17.11.2023
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Georgia Louise Harris Brown
Georgia Louise Harris Brown | Foto: acervo da família Brown

Georgia Louise Harris Brown: uma das primeiras mulheres negras licenciadas como arquiteta nos Estados Unidos, que fez história no Brasil

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17.11.2023
Em comemoração ao Dia da Consciência Negra, conheça a vida e a obra da segunda mulher negra licenciada como arquiteta nos Estados Unidos, mente brilhante que colaborou com Mies van der Rohe e deixou sua marca na arquitetura moderna brasileira, com importantes projetos em São Paulo. Nunca ouviu falar de Georgia Louise Harris Brown? Infelizmente, a invisibilização do trabalho de mulheres negras é comum, mas hoje é o dia de mudarmos isso
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Na primavera de 1918, em uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos, nascia Georgia Louise Harris Brown, descendente de afroamericanos ex-escravizados, povos nativos americanos e colonos alemães. Vinte e seis anos depois, ela receberia o título de bacharel em arquitetura pela Universidade do Kansas — e, posteriormente, viria a se tornar a segunda mulher negra licenciada arquiteta nos Estados Unidos. 

Desde cedo interessada por arquitetura industrial, Georgia Brown se encantou pelo Brasil, onde trabalhou anonimamente por quase cinco décadas na capital paulista, deixando um importante legado para a arquitetura moderna brasileira do século 20. Nesse período, atuou em grandes projetos, dentre eles: a sede regional da Pfizer, em Guarulhos; uma fábrica da Ford, em Osasco; e a fábrica da Kodak do Brasil, em São José dos Campos.

Fábrica da Kodak, São José dos Campos (SP), 1971 | Foto: University of Rochester Library, Rare Books and Special Collections
Fábrica da Kodak, São José dos Campos (SP), 1971 | Foto: University of Rochester Library, Rare Books and Special Collections

Quem foi a arquiteta Georgia Louise Harris Brown?

Filha de um balconista e de uma professora de escola primária, Georgia Brown nasceu em Topeka, uma cidade do Kansas que, na época, não tinha mais que 50 mil habitantes — no mesmo período, São Paulo, cidade onde Brown moraria anos depois, contava com uma população de 600 mil pessoas. No idioma dos nativos americanos Kansa-Osage, “Topeka” significa “um bom lugar para plantar batatas”, algo que diz muito sobre atividade econômica que até hoje predomina na região, a agricultura  — contexto que, de algum modo, se relaciona aos primeiros objetos de interesse de Georgia Brown. 

Ainda menina, Brown já demonstrava aptidão artística e mecânica, tendo trabalhado com carros e equipamentos agrícolas na companhia de seu irmão mais velho, Bryant. Sua mãe, Georgia Watkins, além de professora, havia estudado música clássica, fato que também pode ter contribuído para que Brown desenvolvesse interesse ávido por arte, especialmente pela pintura. 

Em sua família de classe média, todos os irmãos conquistaram diploma universitário, o que explica em boa parte seu destino marcado desde cedo pelo brilhantismo nos estudos. Concluiu o ensino médio em sua cidade natal, na Seaman High School, onde se destacou como uma das melhores alunas. Entre 1936 e 1937, estudou na mesma universidade que sua mãe, a Washburn University, fundada cerca de setenta anos antes por uma comunidade congregacional pró-abolicionista que buscava fornecer educação sem distinção racial. 

Aproveite o Dia da Consciência Negra para ler mais sobre diversidade:

Em 1938, após se graduar, Georgia Brown foi a Chicago visitar o irmão, onde se encantou com a efervescência cosmopolita, marcada por uma forte cultura negra urbana. Lá, participou de um curso de verão ministrado pelo renomado arquiteto modernista Mies van der Rohe, no Armor Institute of Technology, atual Illinois Institute of Technology. O contato com Mies, que se estreitou ao longo dos anos, foi fundamental para moldar sua visão da arquitetura, que viria a se tornar sua profissão da vida inteira: seis anos depois da visita à Chicago, Georgia Brown se tornou a primeira mulher da Universidade do Kansas a conquistar o diploma de arquiteta. 

Formação modernista e trabalho com Mies van der Rohe

A combinação entre tecnologia e arte, desde a infância presente na vida de Georgia Brown, era um pilar consolidado na School of Engineering and Architecture, da Universidade do Kansas. Pautada pela agenda modernista, a instituição procurava enfatizar processos e técnicas de construção, algo que marcou profundamente a atuação profissional de Brown. Além disso, entre 1942 e 1943, Georgia Brown voltou a ter aulas no departamento de arquitetura do Illinois Institute of Technology, que permanecia sob direção de Mies van der Rohe e, por isso, apresentava um currículo focado em tecnologias modernas de construção.

Georgia Louise Harris Brown (ao fundo), trabalhando no escritório de Frank Kornacker | Foto: Edwards, acervo da família Brown
Georgia Louise Harris Brown (ao fundo), trabalhando no escritório de Frank Kornacker | Foto: Edwards, acervo da família Brown

Já formada, Georgia trabalhou no primeiro escritório de arquitetura liderado por uma pessoa negra no centro de Chicago, o arquiteto Kenneth Roderick O’Neal. Apoiador da luta pelos direitos civis, O’Neal se tornou mentor e primeiro empregador de muitos arquitetos negros da época, como Beverly Lorraine Greene, primeira mulher negra licenciada como arquiteta nos Estados Unidos — apenas sete anos antes de Georgia Brown — e John Moutoussamy, primeiro arquiteto afro-americano a projetar um arranha-céu em Chicago. Assim como Brown, O’Neal foi aluno de Mies van der Rohe e se interessava muito pela simbiose entre engenharia estrutural e design, o que impulsionou ainda mais o caráter modernista de Georgia Brown, que trabalhou em seu escritório até se licenciar, em 1949.

Lake Shorte Drive 860-880 | Imagem: Marc Rochkind
Lake Shorte Drive 860-880 | Imagem: Marc Rochkind

A presença de Mies na carreira de Georgia Louise Harris Brown não cessou por aí. Licenciada, a arquiteta começou a trabalhar no Frank J. Kornacker Associates, Inc., escritório do engenheiro estrutural favorito de Mies, onde permaneceu até 1953, projetando residências e ampliações para fábricas e desenvolvendo cálculos estruturais para edifícios de aço reforçado e concreto. Dentre eles, vale mencionar o par de torres feitas de vidro e aço Lake Shorte Drive 860-880, localizado ao longo do Lago Michigan, no bairro de Streeterville, em Chicago.

A experiência com cálculos aprofundou ainda mais a especialização de Georgia Brown em projetos estruturais, o que, junto ao interesse pela construção, a incentivou a se matricular no programa de Techniques of Civil Engineering, da mesma universidade onde se graduou arquiteta. Mais uma vez, foi aluna de destaque, arrematando disciplinas como Cálculo I e II, Mecânica dos Materiais e Fundamentos do Concreto Armado. 

Tamanha dedicação à carreira fez com que Brown se especializasse cada vez mais em seus objetos de interesse, atuando paralelamente em outros trabalhos comissionados na firma de engenharia e arquitetura General Engineers and Designers Co., no projeto de casas, igrejas e edifícios corporativos. Foi nesse período, também, que Georgia Brown se tornou uma das primeiras pessoas negras a ser membra da associação que, mais tarde, passaria a se chamar Association of Women in Architecture. 

Legado arquitetônico de Georgia Brown no Brasil

Após uma visita ao Brasil em 1951, Georgia Louise Harris Brown ficou fascinada pela arquitetura modernista com que se deparou, a qual já estava, à época, amplamente difundida em revistas do meio arquitetônico nos Estados Unidos e Europa. Mas não foi apenas a construção de Brasília que brilhou aos olhos de Brown: o mito da democracia racial, com frequência mencionado nos artigos sobre arquitetura brasileira, seduziu Georgia, que se mudou de Chicago para São Paulo em outubro de 1953. 

Nas quase cinco décadas em que viveu aqui, Brown desenvolveu trabalhos primorosos. O primeiro grande empreendimento do qual participou, tanto do projeto, quanto dos cálculos estruturais, foi o Edifício National City Bank, em São Paulo, trabalhando no escritório de Charles Bosworth, frequentemente contratado por empresas dos Estados Unidos que buscavam se estabelecer no Brasil, atraídas pelo grande desenvolvimento industrial no momento.

Visto de Georgia Louise Harris Brown para viajar ao Brasil | Imagem: Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (RJ)
Visto de Georgia Louise Harris Brown para viajar ao Brasil | Imagem: Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (RJ)

Entre 1954 e 1966, período em que trabalhou no escritório de Bosworth, Georgia Brown adquiriu experiência em projeto, construção e administração de canteiros de obras industriais e de edifícios pré-fabricados, uma expertise que ela mesma reconheceu que seria muito mais difícil obter nos Estados Unidos. Essa experiência em projetos industriais esteve presente nas diversas obras da Racz Construtora com as quais Brown colaborou, entre 1963 e 1972. No mesmo período, desenvolveu dois de seus maiores projetos: a fábrica da Kodak, em São José dos Campos, e a fábrica de espumas e colchões da Trorion S/A, em Diadema. Vale mencionar sua atuação em projetos do setor automobilístico, como o complexo da Ford Motors do Brasil, em Osasco.

Além do trabalho desenvolvido com grandes empreiteiras, Georgia Brown realizou uma série de projetos de residências particulares, muitas vezes desenvolvidos em parceria com outros arquitetos. Isso porque ela não tinha vínculo empregatício com as empresas para as quais trabalhava: como estrangeira em uma época de forte apelo nacionalista no Brasil, só pôde abrir seu próprio escritório de arquitetura ou assinar seus projetos após ser aceita pelo Crea - Conselho Regional de Engenheiros e Arquitetos, o que ocorreu somente em 1970. 

A licença do Crea permitiu que Brown se sentisse menos dependente das empreiteiras e passasse a trabalhar com investidores privados, focando em condomínios residenciais, até 1980, quando fundou sua própria firma, a Brown Bottene Construtora Ltda. A empresa durou até 1993, quando Georgia Louise Harris Brown adoeceu, se aposentou e retornou aos Estados Unidos, onde morreu após uma cirurgia de câncer, em 1999, aos 81 anos de idade. 

“I was always just an architect”

Não há muitos registros sobre Georgia Brown, especialmente traduzidos para o português. Um apagamento semelhante ao que ocorre com tantas outras pessoas pertencentes a grupos sociais marginalizados. Afinal, há de se pontuar que toda a trajetória de Brown foi marcada pelo fato de ela ser uma mulher negra. 

Artigo publicado na revista 'Ebony' em 1950 | Imagem: WomensArt
Artigo publicado na revista 'Ebony' em 1950 | Imagem: WomensArt

Durante a faculdade, Georgia Brown era frequentemente questionada por um professor sobre o motivo de não considerar estudar economia doméstica em vez de arquitetura. Anos mais tarde, ao trabalhar para Frank J. Kornacker, foi a única mulher do escritório. Sem contar que o reconhecimento que pensou que teria em um país supostamente democratico racialmente não ocorreu de fato: nas quatro décadas em que viveu aqui, Brown quase nunca foi creditada em publicações sobre as obras que desenvolveu. 

Mais do que uma exceção nas estatísticas, contudo, a existência de Brown merece ser contada a partir de sua singularidade. Diante disso, recorro à escritora Djaimilia Pereira de Almeida, que diz recusar o lugar de “escritora negra”. Ela conta que ao denominar-se dessa maneira, é como se existisse um grupo maior — o de “escritores do mundo” — e ela fizesse parte de uma espécie de “subgrupo exótico”, sempre visto à margem. Por isso, em vez de se denominar uma “escritora negra”, Djaimilia se considera uma mulher negra que escreve.  

Essa maneira de encarar a si mesma me remete à forma como Georgia Brown parecia se enxergar. Diz ela à cunhada, em uma carta escrita nos anos 1980:

“Nunca pensei em mim mesma como uma pioneira das mulheres negras arquitetas. Eu sempre fui simplesmente uma arquiteta.”

Ao pesquisar seu nome na internet, fiquei curiosa para saber o que lhe inspirava ao fazer um projeto, o que sentiu ao finalmente ter o próprio escritório, qual o cálculo estrutural mais lhe tirou o sono, que lugares da cidade faziam com que ela se lembrasse de Topeka e conseguisse, ainda que brevemente, matar as saudades do lugar de onde nasceu. É essa arquiteta que eu gostaria que outras pessoas conhecessem, a quem ser pioneira não foi objetivo, mas única opção. 

Relembrar a trajetória de Georgia Louise Harris Brown não é se resumir, portanto, ao fato de ela ter sido a primeira arquiteta negra a se formar na Universidade do Kansas ou a segunda a ser licenciada nos Estados Unidos, mas reconhecer que fatos como esses são os responsáveis pela invisibilização a que pessoas como ela são historicamente submetidas. Mais do que considerá-la representante de um grupo — que, aliás, ela não decidiu representar —, esta é uma oportunidade de observar os detalhes da vida e obra de uma pessoa que saiu de uma pequena cidade do outro lado do oceano para fazer história na arquitetura modernista da maior cidade do hemisfério sul. 

Para aprofundar o assunto:

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