Por que a transição capilar é um assunto de toda a sociedade?
Após quinze anos de escova progressiva, Júlia decidiu conhecer o seu cabelo natural. Era tão menina quando começou a alisá-lo que nem se lembrava mais da textura, do volume, da cor. Onze meses depois do último alisamento, resolveu que ela mesma cortaria o restante do cabelo esticado. Em frente ao espelho, no banheiro de sua casa, pegou mecha a mecha com as mãos e cortou todas no exato ponto em que os fios deixavam de ser crespos e se tornavam alisados. No final, observou no reflexo um cabelo crespo com o qual há tempos não se deparava.
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Não sei o que ocorreu com Júlia depois dessa cena porque, na verdade, essa Júlia não existe. O que existem são milhares de Júlias que, por todo o Brasil, também resolveram um dia conhecer os seus cabelos sem a interferência de soda cáustica, formol e tantos outros elementos químicos, há décadas utilizados em procedimentos alisantes.
Esse movimento de retomada dos cabelos naturais ficou conhecido como “transição capilar” e se popularizou no Brasil na segunda década dos anos dois mil. Tanto que, entre 2013 e 2017, as buscas por “cabelos cacheados” no Google ultrapassaram pela primeira vez as pesquisas por “cabelos lisos”.
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Impulsionada pelas redes sociais, a transição capilar ultrapassou o que se pode chamar de vivência pessoal e convocou toda a sociedade a não apenas repensar seu conceito de beleza, mas a tomar para si a responsabilidade de se conscientizar, questionando padrões e combatendo ativamente o racismo no cotidiano.
Não é só cabelo
De acordo com a Sociedade Brasileira de Dermatologia, o cabelo é composto por células que produzem queratina originadas nos folículos pilosos. A partir dessa definição biológica, porém, não é possível explicar a hierarquia que historicamente se construiu acerca das diferentes texturas capilares e que há séculos marginaliza o cabelo crespo, considerado ruim em uma lógica racista. É o que explica a doutora em Antropologia Social, Nilma Lino Gomes, que compreende o cabelo como um símbolo da identidade negra detentor de muitos outros significados.
(Nilma Lino Gomes, no texto Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra)
Outras teóricas negras também buscaram relacionar preconceito capilar ao racismo, dentro e fora do Brasil. A estadunidense bell hooks, em seu texto Alisando nosso cabelo, ressalta que, em uma sociedade estruturada no racismo, alisar o cabelo vai muito além de uma questão puramente estética, representando a “imitação da aparência do grupo branco dominante e, com frequência, indica um racismo interiorizado”.
Essa análise nos leva a concluir que não se pode comparar o alisamento capilar, sobretudo considerando pessoas negras, a outras alterações nos cabelos, como tingimentos. Mesmo que se considere uma decisão individual a respeito do próprio corpo - a qual toda pessoa tem o direito de tomar -, não há como desvinculá-la de um contexto social maior. Portanto, discutir a importância da transição capilar para a sociedade não significa julgar quem decide alisar os cabelos, mas ampliar as possibilidades que uma pessoa pode ter sobre si.
Na maioria dos casos, alisar os cabelos não é apresentado como uma das opções, mas como a única. Tanto que, a maioria das pessoas vivencia o primeiro alisamento ainda na infância, quase sempre uma medida dos familiares em tentar impedir que a criança sofra racismo. Naquele mesmo texto, bell hooks pontua que fazer chapinha era, para as meninas negras como a que um dia ela foi, um rito de iniciação da própria condição de mulher, mais tarde entendido como um esforço em atender aos “padrões de beleza estabelecidos pela supremacia branca”.
É na infância que muitas pessoas sofrem os primeiros casos de racismo, quase sempre em alguma situação envolvendo o cabelo. Expressões racistas que comparam cabelos crespos a objetos como palha de aço são frequentemente ouvidas por crianças negras, que internalizam a ideia de que ter o cabelo natural não pode, sequer, ser uma opção.
Conheça a história do preconceito
Na Idade Média, as representações feitas pelos europeus a respeito de pessoas africanas eram desumanizadoras. A Etiópia, por exemplo, era caracterizada como um lugar amaldiçoado, habitado por monstros. Isso significa que antes mesmo de colonizadores da Europa desembarcarem na costa da África já se havia criado um imaginário racista que, posteriormente, serviu como base ideológica para justificar o tráfico de pessoas negras no comércio transatlântico.
Sendo parte do corpo negro, ao cabelo dos africanos foram atribuidas uma série de percepções negativas. A escritora, teórica e artista interdisciplinar Grada Kilomba, em seu livro Memórias da Plantação, afirma que o cabelo crespo se tornou “a mais poderosa marca de servidão durante a escravidão”, um simbolo de primitividade e desordem, contrário à ideia do que se considerava civilizado. E mesmo depois da abolição da escravatura, a ideia racista de que cabelos crespos eram ruins persistiu.
Foi na virada do século 19 para o 20 que, nos Estados Unidos, os primeiros alisantes capilares surgiram. Vendidos como solução para fazer o cabelo crescer, tais produtos eram considerados milagrosos e frequentemente associados à higiene. Assim como cremes clareadores de pele, esses alisantes eram comercializados como uma forma de pessoas negras se aproximarem do padrão estético considerado elevado, o branco.
Anos depois, essa noção de “limpeza” e “cuidado” seguiu delineando o pensamento das pessoas, mesmo no Brasil, onde mais da metade da população é negra. O cabelo liso, por muito tempo, foi tido como norma. Até dez ou quinze anos atrás, era raro se deparar com uma pessoa de cabelos crespos ou cacheados caminhando nas ruas, atendendo em estabelecimentos comerciais, apresentando programas de televisão. Hoje, é possível notar certos avanços e reparar que, junto à valorização dessas texturas capilares, houve uma disseminação de ideias que amplificaram as discussões sobre racismo no país.
Valorização do cabelo crespo
Já existiam movimentos de enaltecimento do cabelo afro bem antes de surgir a internet. O Black Is Beautiful, da década de 1960, encorajou vários afro-americanos a valorizarem suas características físicas.
Porém, foi a partir dos anos 2010 que o assunto ganhou holofote suficiente para atingir mesmo as pessoas que não faziam parte do combate direto ao racismo. Nas redes sociais, começaram a surgir grupos e canais que disseminavam informações a respeito dos cabelos crespos e iniciavam um movimento que ultrapassava a temática capilar. Ao abandonar alisamentos, pessoas - em sua maioria, mulheres - começaram a trilhar uma jornada de autoconhecimento profundo.
As ideias não ficaram somente no ambiente virtual. Logo, passeatas em prol da beleza negra ganharam as ruas; marcas de cosméticos se adaptaram à demanda que se espalhava em grupos de Facebook; salões específicos para cabelos não-lisos surgiram; pesquisas acadêmicas sobre o assunto começaram a ser produzidas em maior quantidade; o Dia do Orgulho Crespo foi decretado por lei no Brasil.
Pessoas passaram a se reconhecer como negras.
(Neusa Santos Souza, no livro Tornar-se negro)
Representatividade é se ver no mundo
Parar de alisar o cabelo, em teoria, sempre foi uma opção. Bastaria abdicar da chapinha, nunca mais voltar ao salão de cabeleireiro, ficar longe de cremes alisantes vendidos em farmácias de bairro. Porém, tomar uma decisão como essa, em um contexto no qual somente um tipo de cabelo era validado, exigia coragem.
Com a difusão dos ideais propagados pelo movimento de transição capilar, assumir o cabelo natural não era mais uma decisão tão isolada. Ainda que não houvesse com quem se identificar em casa, na escola ou no trabalho, existiam na internet diversas pessoas compartilhando experiências com a retomada dos cabelos naturais. A coragem estava ali.
Portanto, a transição capilar, para além de construir uma nova percepção sobre a identidade de pessoas negras, se tornou uma poderosa ferramenta de combate ao racismo no cotidiano. Enxergar-se a partir de lentes próprias ganhou dimensões globais, possibilitando que o mundo conhecesse texturas capilares por tanto tempo escondidas, que trouxeram consigo novas formas de existir em sociedade.
Para aprofundar o assunto:
- Talvez precisemos de um nome para isso – Stephanie Borges
- Esse cabelo – Djamilia Pereira de Almeida
- Alisando nosso cabelo – Bell Hooks
Que texto importante! Cada vez mais vemos na mídia artistas que engajam este diálogo com a sociedade e é muito bom ver que o Archtrends também está nesta frente!