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lugar de fala mulher
(Fonte: Pexels)

Lugar de fala: situar para ampliar

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23.02.2023
Como esse conceito nos ajuda a acessar pontos de vista historicamente invisibilizados
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Quando comecei a estudar questões de gênero, achava que a cozinha era como uma prisão. Vários eram os discursos feministas alegando se tratar de um lugar do qual eu, como mulher, deveria fugir. Até que em uma tarde, ouvi de minha avó que um dos momentos mais libertadores de sua vida foi quando teve a própria cozinha. 

Para ouvir o artigo completo, clique no play abaixo:

Resumidamente, dona Nina, mãe de minha mãe, trabalhou como empregada doméstica dos oito aos trinta e poucos anos. Nesse período, que juntou infância, adolescência e início da vida adulta, ela viveu em quartinhos apertados dentro da casa de seus patrões, sendo responsável, principalmente, pelo preparo das refeições. As coisas mudaram quando ela conheceu meu avô, na época um jovem trabalhador portuário, e construiu com ele uma nova vida.

Não quero reduzir sua história a um cenário de exploração, mas peço licença à dona Nina para trazer aqui a epifania que tive naquela tarde, quando ela, uma senhora negra, me contou da alegria que sentiu ao ter, finalmente, uma cozinha que era dela. O sorriso aberto de um canto ao outro do rosto e o brilho em seus pequenos olhos contrastavam com tudo o que eu havia lido sobre feminismo até então. Como a cozinha, um espaço que me fizeram acreditar ser horrível, podia lhe causar tanta nostalgia?

Então, entendi o significado de minha confusão. Até aquele momento, eu não havia parado para pensar em quem eram as pessoas que consideravam a cozinha uma espécie de aprisionamento. Por isso, acreditei que aquele discurso valia para todo mundo, como uma ideia universal.

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Mais tarde, unindo as memórias de minha avó a leituras como o livro Mulheres, raça e classe, de Angela Davis, compreendi quem eram aquelas pessoas: mulheres brancas, em geral de classe média ou alta, que vinham de um contexto no qual pessoas como elas eram designadas a serem donas de casa. Foi entendendo o lugar de fala que elas ocupavam que compreendi que aquelas mulheres tinham total direito de reivindicar outros espaços para si, mas não podiam ser as únicas a narrar aquela história. 

O que é lugar de fala?

lugar de fala pessoa preta
(Imagem: Pexels)

Popularizado no Brasil pela filósofa Djamila Ribeiro em seu livro Lugar de fala, esse conceito tem múltiplas origens. De modo geral, corresponde ao local social que cada grupo ocupa e a partir do qual obtém percepções de mundo distintas. 

Essa localização faz com que certos grupos tenham condições diferentes de outros, permitindo que alguns deles tenham mais ou menos acesso à cidadania. Ou seja, dependendo do lugar que se ocupa na sociedade, algumas pessoas podem vir a sofrer mais desigualdades que outras. 

Um exemplo disso é a quantidade de pessoas negras em universidades, que antes da Lei de Cotas, sancionada em 2012, era irrisória. Em 1997, apenas 2,2% de pardos e 1,8% de pretos, entre 18 e 24 anos, cursavam ou haviam concluído um curso de graduação no Brasil, segundo pesquisa realizada pela Andifes - Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior. O resultado dessa disparidade foi uma intensa produção de conhecimento acadêmico partindo unicamente de pontos de vista brancos.

Por meio desse exemplo, é possível notar que o termo lugar de fala não se refere ao ato de emitir palavras, mas ao de existir, como explica Djamila Ribeiro em seu livro.  É como se, diante da falta de oportunidade em contribuir com seus pontos de vista nas universidades, pessoas negras simplesmente não existissem nesses locais. Assim como as narrativas de mulheres como a minha avó, que não existiam nos ambientes brancos de discussão feminista que eu, mesmo sendo negra, achava serem os únicos possíveis. 

A farsa da neutralidade

Quando só alguns pontos de vista são reconhecidos, é como se os demais não existissem. E então, quando outras vozes passam a ganhar espaço, conclui-se que somente elas são posicionadas, enquanto as anteriores, sempre legitimadas, são consideradas neutras, o que é um erro.

pessoa sentada em frente ao computador
(Imagem: Pexels)

O conceito de lugar de fala nos mostra que os discursos não surgem em um lugar neutro e desinteressado. Um artigo de opinião, um documentário, um reality show, um livro, uma novela e até mesmo uma reportagem são produzidos a partir de um determinado lugar social. As pessoas que criam esses discursos possuem gênero, raça, classe, orientação sexual, escolaridade e uma série de outros marcadores sociais que refletem nessas produções.

Sendo assim, em uma sociedade estruturada em opressões como racismo, machismo, LGBTfobia e desigualdade de classes, existe uma falsa noção de neutralidade. Discursos produzidos por grupos dominantes são tidos como imparciais, quase uma espécie de “marco zero” dos assuntos por eles tratados. Quando falamos em raça no Brasil, por exemplo, quem não é branco é considerado “o outro”, como se pessoas brancas não tivessem raça, quando na verdade têm. 

Por isso, é importante detectar de onde os discursos são produzidos, inclusive os considerados neutros. Caso contrário, determinadas visões de mundo continuarão parecendo as únicas e, quando confrontadas com outras, serão tidas como verdades universais. Com isso, as desigualdades sociais persistirão, ditando o que é normal e o que é estranho. 

“Há esta anedota: uma mulher negra diz que ela é uma mulher negra. Uma mulher branca diz que ela é uma mulher. Um homem branco diz que é uma pessoa.”  (Grada Kilomba)

Não é censurar, é ampliar

lupa colorida
(Imagem: Pexels)

Por vezes, o termo lugar de fala é compreendido de forma equivocada, especialmente nas redes sociais. Em uma discussão, é comum nos depararmos com pessoas não-negras afirmando não poderem opinar sobre racismo “porque não é seu local de fala”. Tem até quem revire os olhos diante da simples menção a essa expressão, por considerar que ela se trata de uma espécie de censura.

Porém, entender o que significa lugar de fala é um passo importante para pluralizar os debates da sociedade e abrir espaço para que pessoas historicamente marginalizadas se tornem sujeitas de seu próprio discurso - ou seja, falem por si.  Sendo assim, o termo “lugar de fala” serve para que a quantidade de vozes no mundo seja ampliada, não reduzida. Afinal, quanto mais possibilidade de acesso aos discursos um grupo tem, mais visibilidade ele vai ter. E, consequentemente, mais pluralidade às discussões e à vida em sociedade vai oferecer. 

Livros para aprofundar o assunto:

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Mariany Alves Bittencourt
Colunista

Mariany Alves Bittencourt é jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Catarina. É autora...

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