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O que é interseccionalidade?

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Como a perspectiva interseccional pode ajudar a romper noções limitadas da realidade e dar visibilidade de grupos marginalizados na sociedade
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A primeira vez que me deparei com a palavra intersecção foi em uma aula de matemática da escola. O conteúdo estudado era teoria dos conjuntos e o termo era usado para se referir a elementos que se repetiam em dois ou mais grupos. Por exemplo, se o conjunto A é formado pelos números 1, 2 e 3 e o conjunto B pelos números 2, 4 e 5, então a intersecção entre eles é representada pelo número 2. Ou seja, este é um número que faz parte tanto do conjunto A, como do conjunto B.

Parece estranho começar este texto retomando tal memória, ainda mais se, assim como eu, você não for muito fã de matemática. Mas essa noção foi muito importante para que, quase dez anos depois, já na universidade, eu conseguisse entender o significado da palavra interseccionalidade como uma ferramenta analítica de compreensão da sociedade.  

O que é interseccionalidade?

O termo interseccionalidade foi cunhado pela professora e jurista afro-americana Kimberlé Crenshaw, em 1989, e divulgado pela primeira vez em seu artigo Desmarginalizando a intersecção de raça e sexo: uma crítica feminista negra da doutrina antidiscriminação, teoria feminista e políticas antirracistas e, posteriormente, no texto Mapeando as margens: interseccionalidade, políticas de identidade e violência contra mulheres de cor.

Naquele contexto, Crenshaw identificou que mulheres negras eram invisibilizadas tanto dentro do feminismo, como na luta antirracista. Ao se falar sobre mulheres, tomava-se como norma as experiências de mulheres brancas; ao se falar sobre pessoas negras, tomava-se como norma as experiências de homens negros.  A partir de seu trabalho, a autora buscou explorar as dimensões de raça e gênero da violência contra as mulheres não-brancas, algo que, como ela aponta em seus textos, os discursos feministas e antirracistas da época não conseguiam contemplar. 

Kimberlé Crenshaw
Kimberlé Crenshaw |  Foto: Marla Aufmuth

Apesar de ter surgido no meio acadêmico, o conceito de interseccionalidade se difundiu para fora das universidades e ganhou o debate público. Trata-se de uma ferramenta importante para compreender a complexidade de diversos grupos, considerando os diferentes fatores que atravessam suas existências ao mesmo tempo. 

Diferentemente do que aprendi naquela aula de matemática, Crenshaw me mostrou que não é possível analisar a convivência em sociedade a partir de um ponto de vista que separa grupos. O que importaria, pegando aquele exemplo, não seriam os números 1, 3, 4, 5, mas sim o 2, comum aos dois grupos. Isso significa que, se raça e gênero são dois conjuntos diferentes, só é possível compreender a vivência de uma pessoa ao cruzarmos esses dois conjuntos, isto é, observar o que há na intersecção entre eles. 

A categoria mulher, por exemplo, ao ser analisada sem cruzamento de raça e outros marcadores sociais, como orientação sexual e classe, oferece uma falsa ideia de universalidade. O grupo mulher, sozinho, não é capaz de abarcar as vivências de todas as mulheres do mundo. Em uma sociedade racista, por exemplo, mulheres brancas vivenciam experiências diferentes de mulheres negras, já que estas sofrem dois tipos de opressão social ao mesmo tempo: o machismo e o racismo. 

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Assim, a interseccionalidade nos mostra que os marcadores sociais que nos constituem são indissociáveis, isto é, não nos afetam separadamente. Fatores como gênero, raça, orientação sexual, classe, idade e localização geográfica agem sobre nós ao mesmo tempo, combinando-se de formas a gerar determinadas desigualdades e/ou vantagens. 

Essa concepção nos mostra que não existe um grupo coeso que dê conta de representar todas as pessoas igualmente. Falar em mulheres negras, por exemplo, é falar de um conjunto de mulheres que, apesar de terem a mesma raça, possuem diferenças em relação a outros marcadores sociais. Uma mulher negra heterossexual está em posição de maior privilégio que uma mulher negra lésbica, quando se tem como parâmetro a orientação sexual. Afinal, a LGBTfobia ainda é um problema que discrimina pessoas diariamente e, muitas vezes, as mata. 

Audre Lorde
Audre Lorde | Foto: Jack Mitchell

“Dentro da comunidade lésbica eu sou negra, e dentro da comunidade negra eu sou lésbica. Qualquer ataque contra pessoas negras é uma questão lésbica e gay, porque eu e milhares de outras mulheres negras somos parte da comunidade lésbica. Qualquer ataque contra lésbicas e gays é uma questão de negros, porque milhares de lésbicas e gays são negros. Não existe hierarquia de opressão. ”

(Audre Lorde, no texto Não existe hierarquia de opressão)

E eu não sou uma mulher?

Muito antes de Kimberlé Crenshaw inaugurar o termo interseccionalidade, outras mulheres negras já vinham tentando mostrar a importância de levar em consideração, para além do gênero, fatores como raça e classe. Em 1851, durante a Convenção pelos Direitos das Mulheres, em Ohio (Estados Unidos), uma mulher negra chamada Sojourner Truth mostrou que não se pode abranger todas as mulheres em um só grupo. 

Na ocasião, um grupo de clérigos alegava que as mulheres não deveriam ter os mesmos direitos que os homens por, dentre outros motivos, serem frágeis. Então, Sojourner Truth se direcionou  ao público, que incluía mulheres brancas sufragistas, e realizou um discurso que entrou para a história. 

Sojourner Truth
Sojourner Truth | Fonte: Hulton Archive

“Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? (...)”

(Sojourner Truth - leia o discurso completo aqui)

A fala de Truth é uma demonstração prática de como a ausência de interseccionalidade invisibiliza grupos marginalizados. Ao trazer esse retrato para os dias atuais, é possível questionar inúmeros discursos, como aqueles que afirmam que antigamente as mulheres ficavam em casa cuidando dos filhos enquanto os homens saiam para trabalhar. Ora, que mulheres? Certamente não estamos nos referindo às que, segundo dados do Ipea, representam 63% das que atuam como empregadas domésticas ou babás: negras, pobres, com baixa escolaridade. 

De acordo com o estudo, a forte presença do trabalho doméstico remunerado no Brasil evidencia três características da nossa sociedade: a herança escravocrata que impunha à mulher negra o lugar de servidão, inclusive no espaço da casa; o patriarcado e a expressiva desigualdade de renda. Dessa forma, quando falamos que antigamente mulheres ficavam em casa cuidando dos filhos, precisamos situar que elas eram, em imensa maioria, mulheres brancas e ricas. Estas, por sua vez, também lutaram e permanecem lutando pelos seus direitos. Mas, como na convenção na qual Sojourner Truth discursou, para que essa luta abarque, de fato, todas as mulheres, é preciso considerar uma perspectiva interseccional.

Perspectiva interseccional para avanços sociais

Compreender interseccionalidade permite a elaboração de propostas mais eficazes de combate às desigualdades. Sem um ponto de vista interseccional, é comum que se afirme que homens ganham salários mais altos do que as mulheres. Porém, é necessário questionar a que homens e a que mulheres essa afirmativa se refere. 

Segundo a pesquisa do IBGE Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, que traz dados de 2018, mulheres brancas ganham mais que homens negros. Além disso, o estudo mostrou que mulheres negras são o grupo mais mal remunerado do Brasil, recebendo cerca de 44% do que os homens brancos recebem.

Para além da desigualdade salarial, os dados de raça e gênero entrelaçados mostram a marginalização das mulheres negras em outros aspectos da sociedade. A representação em cargos políticos, por exemplo, permanece tendo maioria de homens brancos e, mesmo ao observar as candidatas mulheres eleitas, as brancas são a maior parte. O mesmo estudo do IBGE, dessa vez com dados mais recentes, mostrou que das 5.502 pessoas eleitas para o poder executivo municipal em 2020, apenas 663 eram mulheres. Dentro desse grupo, 443 eram brancas, 201 pardas e 10 pretas. 

Pensando no cenário de feminicídio, as taxas também são maiores em mulheres negras. De acordo com dados do Instituto Igarapé, elas representam 67% dos casos notificados em 2020. Ademais, o levantamento mostrou que, entre 2000 e 2020, o feminicídio de mulheres brancas diminuiu 33%, enquanto o de mulheres negras aumentou 45%. 

Portanto, ao romper uma falsa ideia de grupos universais, a perspectiva interseccional contribui para uma maior atenção às especificidades de cada pessoa. A compreensão dos fenômenos sociais e o enfrentamento às desigualdades, como na criação de políticas públicas, precisam ser realizados a partir de uma análise interseccional da realidade. Caso contrário, muitos grupos permanecerão desconsiderados em nome de uma lógica que os homogeneiza e, por consequência, os invisibiliza. 

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