Retrospectiva celebra vida e obra de Enzo Mari, na Triennale di Milano
Em 17 de outubro, a Triennale di Milano inaugurou uma das exposições mais esperadas do ano com a retrospectiva da obra do designer italiano Enzo Mari. Infelizmente, Mari veio a falecer no dia seguinte à vernissage, aos 88 anos, acometido pela COVID-19. Apesar disso, o designer participou de todo o processo de criação da mostra intitulada Enzo Mari curated by Hans Ulrich Obrist, com co-curadoria de Francesca Giacomelli.
Atualmente, a Triennale está novamente fechada devido à segunda onda da pandemia que atingiu em cheio a Lombardia. Mas tem reabertura prevista para 3 de dezembro. Quem puder visitá-la — até 18 de abril de 2021– terá a oportunidade de apreciar o trabalho de um dos designers mais brilhantes, inquietos e provocativos dos últimos tempos. Oportunidade única pelos próximos 40 anos.
É que Mari doou em vida seu arquivo à cidade de Milão, onde trabalhou e morou. São cerca de 1500 projetos entre desenhos técnicos, maquetes, protótipos, obras de arte, fotografias e livros, que vão fazer parte do patrimônio cívico da cidade. No entanto, o mestre estabeleceu uma condição: nada deve ser mostrado ao público durante as próximas quatro décadas. "Ele justificou isso alegando que, de acordo com suas previsões mais otimistas, esse será o tempo necessário até que uma nova geração, que não seja mimada como a de hoje, seja capaz de fazer bom uso desse acervo, retomando o controle do profundo significado das coisas", explica Stefano Boeri, presidente da Triennale.
A exposição está dividida em duas partes: uma seção histórica e outra, onde uma série de artistas e designers de várias partes do mundo foram convidados a homenagear Mari com instalações site-specific. Entre os nomes que assinam essa homenagem, estão Nanda Vigo e Dan Vo, Tacita Dean, Dominique Gonzalez-Foerster, Adelita Husni-Bey e Dozie Kanu. Na parte histórica, é possível ver a versão de uma exposição montada em Turim, entre 2008 e 2009, apresentada em ordem cronológica, com curadoria do próprio designer. Estão expostos cerca de 250 trabalhos criados por Mari entre a década de 1950 e 2010.
Também faz parte da mostra uma série de entrevistas em vídeo, feitas pelo curador Hans Ulrich Obrist, que ilustram as constantes tensões éticas de Mari, a profundidade de sua compreensão teórica e sua extraordinária habilidade com o design.
Design com propósito
São mais de 60 anos de uma carreira que passou pelas artes, design, arquitetura, filosofia e educação. "Em minhas conversas com Mari sobre seu trabalho na década de 1960, aprendi sobre sua conexão com o comunismo e o movimento de artes e ofícios, e como ele sempre viu o design como algo inerentemente político", explica Obrist. A partir daí, o curador começou a entender todas as nuances do trabalho de Mari como designer industrial, designer de móveis, artista, escritor e um polemista, especialmente famoso por sua fúria contra a industria e o consumismo. "Sempre que passava por Milão, nunca perdia a oportunidade de me encontrar com ele e sua esposa", revela.
A missão de Mari no universo do design foi muito além do que a de desenhar produtos que aliam forma e função. Para ele, o design também comunicava algo e não deveria ser atrelado a ganhos econômicos. "Uma das coisas com as quais ele tinha grandes problemas era com o objetivo de lucro do mundo do design. Ele queria me livrar dessa ideia de comercializar — seja da indústria, das marcas, até da publicidade. Porque, para Mari, design só é design se também comunica conhecimento", afirma Obrist.
Assim, uma das características mais importantes de seus projetos, em qualquer área, é que eles foram pensados para resistir à passagem do tempo. "Ele sempre teve como objetivo criar desenhos que fossem sustentáveis em sua materialidade e estética, além de serem acessíveis para todos", complementa o curador.
Alinhado com esse conceito de democratização do design, ele criou, em 1974, o manual Autoprogettazione, que propôs um exercício a ser realizado individualmente com desenhos que se opunham à indústria. A ideia é que quem ler o livro possa construir sua própria peça usando pranchas de madeiras e pregos. Visionário, Mari certamente foi o precursor do design open source.
O calendário Perpétuo Timor, de 1967, criado para a Danese, é outro conhecido desenho de Mari que vai contra o consumismo propagado pelo desenvolvimento da indústria. Inspirado nas comunicações visuais das ferroviárias, ele é modulável, lavável, transformável e durável. Lâminas de PVC mostrando os dias e meses em numeral e os dias da semana giram em torno de um suporte central feito de uma única peça de plástico. Segundo Mari, os calendários perpétuos exigem interação porque é preciso lembrar de atualizá-los todos os dias.
Outros clássicos
Apesar do lado crítico de Mari em relação ao consumismo, a obra do designer é marcada por peças que se tornaram ícones na história do design de móveis e de produtos. Seus primeiros trabalhos incluem uma série de colaborações com a marca italiana Danese, quando criou, além do calendário perpétuo, vasos, porta-lápis, e um quebra-cabeça infantil chamado 16 Animals. Esta peça é fruto de um corte contínuo em uma única peça de carvalho maciço e um dos mais famosos brinquedos com design assinado.
Durante as décadas de 60 e 70, Mari desenhou inúmeras peças de mobiliário para outras marcas italianas — muitas delas figuram até hoje nos catálogos —, a exemplo da cadeira Delfina, criada para a Driade, em 1974, que ganhou, inclusive, o prêmio italiano Compasso d'Oro, em 1979.
A cadeira Tonietta, de 1980, criada para a Zanotta, é outro destaque entre as peças de mobiliário criadas por Mari. Constituída de uma estrutura de alumínio fundido com a qual se resolvem as duas pernas traseiras enquanto o assento é feito de material plástico.
De 1979, a poltrona Sof Sof para a Driade, tem uma moldura de filete de ferro que é utilizada para construir uma estrutura de quatro trapézios e cinco retângulos. Esses laços metálicos compõem uma espécie de contorno da cadeira.
De 1973, o bowl da Série Samos, criada para a Danese, é um belo exemplo da colaboração que pode existir entre o design e o artesanato. Feita de porcelana esmaltada, a peça era totalmente feita à mão e a série tinha diversos modelos.
Mari também foi autor de publicações impressas. Na década de 60, destaca-se um livro chamado The Apple and the Butterfly, que contava a história de uma lagarta através de ilustrações. Trata-se de uma narrativa visual onde é possível reconhecer outras marcas estéticas de Mari, como a maçã que ilustra a série de serigrafia Natureza, criada na mesma época para a Danese. A história é contada sem o uso de palavras e apresenta, por meio de cores e formas contrastantes, a metamorfose da lagarta, que se torna borboleta, sob os signos da simplicidade e da beleza.
Simplicidade da forma e grande consistência de conteúdo. Essa é a genialidade do design de Enzo Mari.
Genial, grata por tanta informação em um só texto!