Seis personagens em busca de um autor
Cena 1, junho de 2018: “Agora, ou eu deslancho ou me afundo de vez”
A frase foi dita por Aldo Urbinati, antes de dar uma gargalhada nervosa, ao me contar que estava projetando uma reforma na loja que Paulo Mendes da Rocha projetou para a Forma, em São Paulo. Apesar de exagerada, sua ironia tinha fundamento. O espaço estava desocupado há alguns anos e ele, aos 42 anos e liderando o escritório de arquitetura Estúdio Tupi, tinha consciência de que estava prestes a adentrar um templo sagrado do olimpo arquitetônico envolto num terreno pantanoso do qual era difícil sair sem ter os sapatos sujos de lama.
Cena 2, décadas de 1950 e 1960: a Forma como ícone nacional do design
A Forma se consolidou como um ícone brasileiro do design. A primeira razão de sua relevância diz respeito ao mobiliário que produziu. O DNA da marca tem origem na Pau Brasil, uma fábrica de móveis criada em São Paulo por dois italianos radicados na cidade durante o pós-guerra: Lina Bo Bardi, que dispensa apresentações, e Giancarlo Palanti, autor de edifícios memoráveis, como o Conde de Prates, implantado entre a praça do Patriarca e o vale do Anhangabaú, em São Paulo, e o Pavilhão do Brasil na Bienal de Veneza. A Pau Brasil foi comprada pelos irmãos Hauner – Carlo e Ernesto -, também italianos e que trabalhavam desenhando para Palanti e Lina. Os irmãos mudaram o nome da empresa, instalada no bairro do Itaim Bibi, para Móveis Artesanal.
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Ao tentar vender mobiliário para o Centro Cívico de Curitiba, Carlo conheceu o jovem arquiteto Sergio Rodrigues, que era um dos responsáveis pelo projeto. A venda não deu certo, mas Rodrigues tornou-se sócio da Móveis Artesanais, ao abrir uma filial na capital paranaense. O negócio foi um fracasso, e a loja curitibana fechou em seis meses. Mas o episódio fez com que Rodrigues ingressasse no universo do design, fazendo história ao criar peças como a poltrona Mole e criando suas próprias lojas, a exemplo da Oca.
A Móveis Artesanais ganhou novos sócios – o empresário Ernesto Wolf e o designer austríaco Martin Eisler – e mudou de nome para Forma, adotando o nome de uma loja de objetos de decoração que os irmãos Hauner haviam criado na Rua Augusta em 1953.
Mas a Forma ganhou musculatura ao ser a primeira empresa brasileira a comercializar ícones do design internacional. Para dar um exemplo, entre as peças fabricadas estava a cadeira Barcelona, desenhada em 1929 por Mies van der Rohe.
A façanha foi alcançada a partir de um acordo comercial com a Knoll, empresa norte-americana detentora dos direitos autorais. No início dos anos de 1960, depois que a firma brasileira assinou o contrato para fabricar as peças, a Knoll enviou para o Brasil um arquiteto da matriz nova-iorquina para supervisionar a produção. Mexicano, o projetista tinha autoridade para adaptar as peças conforme a capacidade técnica da indústria brasileira. Imagine a responsabilidade: se a Forma, por exemplo, não tivesse capacidade de produzir as hastes metálicas da cadeira Barcelona com a bitola que Mies van der Rohe imaginou, o mexicano poderia mudá-las para a realidade nacional.
O trabalho estava previsto para durar três meses mas se estendeu muito. O mexicano se adaptou bem ao Brasil, a Forma ofereceu-lhe um emprego e ele ficou. Seu nome era Aurelio Martinez Flores e durante toda a década de 1960 ele trabalhou para empresa, não só produzindo as peças segundo a realidade nacional mas também projetando interiores, sobretudo de escritórios, liderando uma equipe de arquitetos que produziam mais de 50 projetos por mês.
Cena 3, 1972: reverberação da Forma cria nova forma
Após deixar a empresa em 1970 para abrir sua própria loja – a Interdesign – em 1972, Flores realizou seu primeiro projeto de arquitetura no Brasil. A encomenda foi feita por um vizinho do prédio onde ele morava e que se tornou um amigo fraterno: o publicitário José Zaragoza. Primeiro, ambos viviam no edifício Paulicéia, no meio de uma grande turma de jovens promissores, da qual faziam parte a poetisa Edla van Steen e a fotógrafa Claudia Andujar. Depois, ambos mudaram-se para o mesmo prédio, na avenida 9 de Julho, na alça da Fundação Getúlio Vargas.
O então jovem publicitário, o Z da DPZ, pediu ao amigo que desenhasse uma casa de praia no Guarujá. Entre centenas de doses de whisky, eles criaram a quatro mãos, numa espécie de brainstorm publicitário, um caderno de referências para o projeto. A origem hispânica de ambos contribuiu para a criação de uma colcha de retalhos com desenhos e colagens (ao ver o caderno, Pietro Maria Bardi pediu o exemplar para o acervo do Museu de Arte de São Paulo).
Mas o que interessa é o resultado, a casa do Guarujá. De alvenaria de paredes grossas pintadas de branco, a casa possui um percurso de acesso inesquecível. Diante de uma fachada com caixas de alturas diversas, florescem primaveras coloridas que brotam por trás de muros que nem percebemos. Na lateral direita, discreta, um vão é a única abertura perceptível. Para adentrar o abrigo de veraneio, segue-se por ele por não haver outra alternativa. Baixo, largo e escuro, o percurso é um corredor com 15 metros de comprimento, uma espécie de túnel com piso de paralelepípedo. O visitante é levado a caminhar na direção da luz, sem perceber a saída do túnel, que fica no final, à direita. Ali, há um pátio com uma escada à esquerda e uma porta na frente. Do lado direito, um vão na alvenaria permite avistar um campo de golfe. Com esse acesso, Flores inaugurou uma corrente arquitetônica que contrasta com as escolas hegemônicas do Brasil – a Escola Carioca e a Escola Paulista. Entre os principais discípulos de Flores, estão Isay Weinfeld e Marcio Kogan. Se não fosse a Forma, nada disso teria acontecido.
Cena 4, 1987: a Forma como ícone arquitetônico
Após migrar do centro da cidade para uma loja na Avenida Faria Lima, a Forma decidiu construir uma loja própria, com qualidade arquitetônica. Na Faria Lima, quase esquina da Avenida Rebouças, ela ocupava um imóvel anódino, no térreo de um edifício vulgar, construído no boom imobiliário que edificou em menos de dois anos o paredão de espaços de negócios da avenida, com pouquíssimos exemplares com algum destaque arquitetônico.
O design brasileiro engatinhava e as peças comercializadas pela Forma seguiam o padrão internacional, desde os clássicos modernos da Bauhaus chegando até os coloridos Strips da milanesa Cini Boeri. A Forma era uma espécie de garantia de bom gosto e estudantes de arquitetura e design se apoderavam dos folders da loja como se fossem páginas da Bíblia.
O endereço escolhido para a nova loja foi um lote na Avenida Cidade Jardim, a menos de dois quilômetros do imóvel da Faria Lima. Uma funcionária graduada da loja, Maria Helena Estrada – que, um ano depois, lançou os irmãos Campana – sugeriu o nome de Paulo Mendes da Rocha para desenhar o novo espaço. Na altura, aos 59 anos, ele era um arquiteto marginal, não estava na moda e só figurava na lista dos mais importantes projetistas paulistas de sua geração na contabilidade de três ou quatro especialistas.
Enquanto todos imaginavam que ele estava hibernando, o mais notável nome da escola paulista estava à espreita, com um olhar astuto, esperando a oportunidade para colocar em prática seu ápice criativo. Naquele período, Mendes da Rocha criou, além da Forma, projetos como o Museu da Escultura, a Casa Gerassi e a capela de Campos do Jordão.
Entre eles, a loja da Forma é o mais modelar, a paixão dos discípulos. Regular, ela é quase um manifesto de ocupação de um terreno genérico: uma caixa suspensa. Com duas empenas duplas de cada lado, chamadas pelo próprio autor de “fortalezas”, a loja reinterpreta o arquétipo moderno do volume sobre pilotis sem, no entanto, manter a premissa de volume elevado por pilares. O vão entre as duas fortalezas é vencido por um engenhoso sistema de vigas metálicas que acompanham a fachada, deixando o interior livre de colunas. Na loja da Forma, Mendes da Rocha começou a exercitar o binômio estrutural do concreto armado com peças metálicas. Para fechar o volume suspenso, ele imaginou um painel leve, de alumínio branco, provando que o revestimento não tinha culpa dos fins vulgares para que era normalmente aplicado em fachadas de prédios modernosos, escolas de línguas ou até padaria. Na faixa de baixo, na frente e no fundo, fixou as duas únicas aberturas da loja, criando uma vitrine de três metros de altura, capaz de expor os produtos para serem capturados na velocidade dos carros que seguiam para o futuro – o Morumbi.
Cena 5, 2009: a Forma perde a alma
Seus móveis mudaram de endereço junto com a marca para uma casa reformada na Rua Colômbia, quase na frente do ginásio Paulistano, desenhado em 1958 por Mendes da Rocha. A mudança foi parte da divisão da herança dos então donos da Forma, a família Schmidt, fundadores nos anos de 1950 da Giroflex, que foi o maior fabricante de cadeiras do Brasil. A Giroflex comprou a Forma em 1997 e manteve o imóvel da Cidade Jardim e o catálogo internacional. Sem o mesmo brilho do passado, várias peças passaram a ser encontradas na Teodoro Sampaio, a rua de móveis populares da cidade, pois o design de clássicos do moderno, como a cadeira Wassily, entrou em domínio público. Em 2009, o imóvel da Cidade Jardim ficou com Markus Schmidt, neto do fundador da Giroflex. A loja icônica de Mendes da Rocha, conhecida como “loja da Forma”, não podia mais abrigar a marca. Nesse momento, Markus abriu a Creative Original Design, mudando a fachada da loja. Não houve nenhum protesto no meio arquitetônico.
Contudo, mais significativo do que a mudança na fachada foi a mudança no entorno. Primeiro, com a construção do túnel Max Feffer, entre 2001 e 2004. Com projeto de Júlio Neves, encomendado na gestão de Maluf, o túnel estrangulou a escala da avenida, cortando as tipuanas do canteiro central e abrindo uma das entradas bem na frente da loja. Enquanto isso, para piorar o cenário da vizinhança, nos lotes vizinhos de fundo da loja foram construídos vários monstrengos neoclássicos, com apartamentos de luxo. Com a crise recente, a Creative Original Design fechou e a loja ficou vazia.
Cena 6, 2 de fevereiro de 2019: “A loja que já foi da Forma passa por mudanças radicais. Alguém está acompanhando?”
A pergunta foi escrita por Renato Anelli em seu perfil no Facebook e no Instagran. Professor de USP de São Carlos, o crítico de arquitetura ilustrou o comentário com uma foto da fachada sendo transformada com revestimento vermelho. O espaço, reformado por Aldo Urbinati, estava quase pronto. Foi inaugurado na semana seguinte, com três dias de eventos, enquanto dezenas de comentários eram postados no perfil de Anelli. Como qualquer faceta da sociedade, a crítica arquitetônica foi impactada pela mídia social, e o autor da reforma foi crucificado sem que ninguém tivesse visitado a obra. Raras foram as vozes lúcidas que ponderaram que não dava para analisar o resultado só com uma foto tirada do carro em velocidade. Uma delas, a crítica Ruth Verde Zein, lembrou que o próprio Mendes da Rocha havia dito que a fachada era um outdoor.
A repercussão no ambiente arquitetônico catapultou o assunto para as páginas da Ilustrada, o caderno cultural da Folha de S. Paulo, em matéria escrita por Francesca Angiolillo, jornalista que também tem diploma de arquitetura. Anelli afirmou que o autor “poderia ter feito uma intervenção mais respeitosa” mas releva a questão estética por preferir a loja aberta. Já a crítica Maria Isabel Villac não gostou, argumentando que o espaço interno perdeu a fluidez e o vermelho fez com que a fachada perdesse leveza e criasse raízes. Outros críticos procurados não quiseram se posicionar e mesmo Mendes da Rocha não quis polemizar. Uma das controversas apresentadas na Folha foi o fato de Urbinati não ter consultado o autor do projeto, o que revelaria uma possível falta de ética profissional.
Prevendo a repercussão, Urbinati se antecipou e escreveu um livro de 180 páginas batizado de Mea Culpa – ou como fizemos para reformar a forma de Paulo Mendes da Rocha. Com sinceridade, ele encara o debate de maneira franca, descrevendo sua proximidade com Mendes da Rocha e a Forma, tecendo relações entre sua formação profissional, o mundo arquitetônico e o literário. Segundo relata no livro, ele aceitou o projeto “como quem aceita qualquer sacrifício para ser perdoado pelos deuses e superstições assimétricas que fazem alguém como eu ter medo de voar de avião”.
Verdade seja dita: a encomenda não era fácil, ou seja, o enunciado do problema complicou tudo: como juntar diversos fornecedores embaixo de um mesmo teto, criando uma espécie de bazar da decoração e de produtos de interiores, dentro de um ícone do design e da arquitetura de São Paulo? Mas, o que de fato importa: o espaço manter-se vivo, ganhar uma sobrevida? Ou era preferível que ele ficasse fechado, tornando-se ruína? Entre mortos e feridos, Urbinati não cometeu nenhum pecado mortal, algo que não possa ser revertido na hora do juízo final. O único ponto delicado é o caixilho de vidro que fecha o pilotis; o arquiteto não conseguiu demover o cliente da ideia de expor um produto de um dos inquilinos e possibilitar o uso do térreo para eventos. Mas o importante é que o concreto foi restaurado e o projeto original respeitado.
A questão principal a que este enredo nos leva é: como manter, com dignidade, o patrimônio moderno que as gerações passadas levantaram? Como a sociedade civil, sem o auxílio do Estado, pode deixar vivo esse patrimônio? Essa controversa não é só da loja da Forma, que, é importante lembrar, não é protegida por nenhuma instância do patrimônio histórico. Ou seja, o Estado não reconhece o seu valor. Observem que até o tombamento, que sempre pareceu ser uma garantia eterna, está em aberto: recentemente, a vila criada por Flávio de Carvalho, na Rua Lorena, perdeu a proteção e pode ser derrubada hoje mesmo.
Este é um de vários exemplos de “destombamento”. E agora estão modificando o tombamento do entorno da praça Vilaboim, em Higienópolis, para possibilitar a construção de um novo prédio que pode afetar a leitura arquitetônica do edifício Louveira – ícone criado por Vilanova Artigas. O debate na mão da sociedade é a manutenção – ou não – de nossa história e identidade.
Esta loja é a mesma que era localizada na Farme de Amoedo, em Ipanema, no Rio de Janeiro?
[…] do patrimônio arquitetônico moderno”, escreveu Fernando Serapião em seu delicioso texto sobre a reforma da icônica loja da Forma para abrigar o showroom da […]