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Retrato de Gaetano Pesce

Os valores do tempo

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04.04.2024
Para Gaetano Pesce, arquiteto e designer italiano, o design é uma linguagem, um meio de comunicar a realidade. Pesce infelizmente faleceu em abril de 2024. Em sua homenagem, relembramos a genial entrevista que ele deu a Taissa Buescu, colunista do Archtrends, em 2020, em ocasião da Mostra UNLTD da Portobello. Do alto de seus 80 anos, o mestre alertava: o segredo de manter-se jovem é viver o presente, com olhar sempre para o futuro, acompanhando a evolução da humanidade
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Gaetano Pesce é uma das pessoas mais interessantes e uma das mentes mais brilhantes que já conheci. Poderia escutá-lo falar por horas a fio, absorvendo sua genialidade aplicada em cada detalhe de seu processo criativo.

Não pode ler agora? Ouça a coluna clicando no player:

É uma pessoa, de fato, alguns anos luz à frente de seu tempo. Tive a honra de entrevistá-lo para o evento de lançamento da Mostra UNLTD da Portobello, realizado no dia 14 de outubro de 2020, em versão 100% online. Aqui registro alguns dos momentos mais especiais da entrevista, cuja integra pode ser assistida no vídeo abaixo.

A TERCEIRA DIMENSÃO DO DESIGN

Com sua mente inquieta, Gaetano sempre foi muito além da função ou da experimentação dos materiais ao criar suas peças e, através de seu trabalho, cunhou a terceira dimensão do design: seu significado.

Suas obras traduzem seus comentários sobre a realidade, carregadas de conceito e mensagem. Política, religião, direitos humanos sempre fizeram parte do processo criativo de Pesce.

“A Série UP, que desenhei em 1969, é um dos projetos mais importantes que fiz até hoje, porque faz uma forte crítica à submissão das mulheres à sociedade machista, ao tratamento inferiorizado e violento ao qual sempre foram submetidas. As mulheres são extraordinárias porque geram a humanidade, com inteligência e leveza. Elas deviam reger o mundo!”, declara.

Série UP (Foto: Klaus Zaugg, 1969)
Série UP (Crédito: New Edition, 2003)
Série UP (Crédito: 1969 HR)

Outro projeto seu carregado de significado é a Torre Pluralista, criada para São Paulo, nos anos 90, durante o governo Collor. Infelizmente, devido ao confisco governamental da época, o projeto não saiu do papel. A Torre Pluralista de Pesce era um documento político que transformava a arquitetura em manifesto pela democracia: cada andar deveria ser projetado por um arquiteto (brasileiro) diferente, que teria carta branca para escolher diferentes acabamentos de fachada, a posição das varanda e janelas, incluindo a distribuição dos ambientes. “Um prédio onde todos os andares são idênticos, por fora e por dentro, é uma ditadura arquitetônica. Cada família que habita um apartamento tem sua história, sua cultura. Por que não externar isso na fachada do prédio? Por que a arquitetura não pode representar a diversidade plural dos seus habitantes?”, recorda Gaetano, cheio de energia para retomar o projeto e enfim realizar seu manifesto ainda tão atual.

Torre Pluralista
Torre Pluralista

Para Pesce, quando se faz um mesmo tipo de projeto no Brasil, no Japão ou na Suécia, por exemplo, sem respeitar a diversidade do lugar, da cultura, das tradições, a identidade do seu povo ou da região geográfica onde a construção é realizada, aquela arquitetura se reduz à pura estética, decoração, sem conteúdo. “Arquitetura ou design sem conteúdo não tem o que comunicar, não tem inovação da linguagem, não deixa um legado sobre o lugar onde está construída. Não serve para nada”, completa.

E, às vésperas das eleições nos EUA, país onde vive há mais de 40 anos, ainda manda um recado importante: “Não somos iguais. Somos diversos pela raça, cultura, geografia. A democracia deve garantir e proteger a nossa diversidade. Os políticos ainda não entenderam isso porque são homens e, como tais, são retardados.”

CLIENTES INTELIGENTES - UMA GRANDE OPORTUNIDADE

“A salvação da arquitetura é o cliente inteligente, cabeça aberta, que dá espaço ao arquiteto exprimir suas ideias, sua mensagem ao mundo”, revela Pesce.

No final dos anos 1980, Gaetano foi contratado por um cliente chinês que vivia no Japão para projetar um prédio comercial em Osaka. Como o terreno era estreito e tinha um custo altíssimo, não caberiam jardins ou terraços. Mas sendo a natureza necessária ao bem estar dos usuários da edificação e aos habitantes da cidade, Gaetano criou a primeira fachada verde (isso mesmo! Alguns anos antes dos jardins verticais do paisagista francês Patrick Blanc), desenhando painéis de material cerâmico com vasos de dimensões variadas e sistema de irrigação onde foram plantadas espécies locais primando pela diversidade do ecossistema e respeitando a ensolação. “A vegetação ajuda a viver melhor, traz oxigênio e bem estar, alegria com suas flores. As cidades precisam dessa dimensão orgânica. O prédio tornou-se um bem coletivo, tanto que é a prefeitura de Osaka que custeia a manutenção do seu jardim vertical”.

E conclui, com frase retumbante: “Se a inteligência prevalecesse, coisas extraordinárias poderiam ser realizadas, o mundo poderia dar passos gigantescos rumo ao progresso.”

Organic Building, Osaka, 1989

PESQUISAR, REFLETIR, INOVAR.... A MESMICE DEPRIME

Gaetano é um dos criativos que mais experimentou materiais diversos , um curioso nato e inquieto incurável .

Quando se formou na faculdade de arquitetura de Veneza, 60 anos atrás, se deu conta de que não conhecia os materiais contemporâneos. Escreveu, então, para três indústrias químicas da época para conhecer seus produtos e, dentre elas, a Bayer respondeu convidando-o para visitar sua fábrica na Alemanha. Essa iniciativa lhe rendeu aprendizados extraordinários do ponto de vista da técnica e de resistência dos materiais, e ainda lhe despertou o insight de que seu trabalho deveria explorar os materiais do seu tempo, que eram muito mais interessantes do que aqueles do passado. Daí nasceu sua inquietude na experimentação de novas matérias e possibilidades. “Fazer coisas repetitivas é muito deprimente... e é contrário ao tempo que passa, não se evolui fazendo a mesma coisa sempre”, completa.

A coleção I Feltri que desenhou para a Cassina nasceu de um passeio a pé por Hong Kong em um dia chuvoso. Gaetano achou um pedaço de feltro no chão, ensopado pela água da chuva. Daquela observação ele percebeu que se embebesse o feltro com resina e o moldasse em qualquer forma, o feltro resinado enrijecido daria estrutura à peça. Dito é feito: a coleção I Feltri não tem nenhuma estrutura em metal ou madeira, nem mesmo um prego ou parafuso sequer, além do feltro.

I Feltri, 1986
I Feltri, 1986

A Série UP, além de representar, como já citado acima, um manifesto em defesa dos direitos das mulheres, é outro exemplo fantástico de experimentação do material. Foi originalmente criada em 1969 em pura espuma (sem estrutura interna) e ainda vinha embalada a vácuo, entregue ao consumidor final prensada na forma de um grande envelope, o que permitia agilidade e economia de armazenagem e transporte. O consumidor abria o envelope e a poltrona UP se inflava com o ar, voltando à sua forma de 1,3m de altura, em uma performance surpreendente para o adquirente da peça. Esta ideia também surgiu do simples ato de se lavar com uma espuma de banho, que perdia volume quando apertada entre os dedos e, quando solta, repreendia sua forma.

Série UP - Abertura da embalagem a vácuo
Série UP - Abertura da embalagem a vácuo
Série UP - Abertura da embalagem a vácuo
Série UP - Abertura da embalagem a vácuo

Trabalhar com as mãos também é parte fundamental do trabalho de Gaetano. “O cérebro pensa e passa a informação para as mãos. As mãos, ao trabalharem, executam a ideia quer era apenas pensamento , pensamento este que volta para o cérebro com outras informações dadas pelas mãos, que só com o cerebro ou mesmo com a ajuda do computador, não se poderia imaginar”, afirma.

ESPIRITO JOVEM E INOVADOR AOS 80 - QUAL O SEGREDO?

Não me contenho, e pergunto: Mas, Gaetano, como você faz para ter as ideias muito antes dos demais, muito antes das coisas acontecerem?

“É necessário refletir, concentrar-se . A concentração lhe dá a profundidade do pensamento, só assim se consegue entender as coisas, prever situações...“

Sorte? Gaetano diz que parte é também sorte. Mas as pessoas devem se colocar em condições de percebê-la e agarra-la. “Sorte é uma situação de transparência que se move e se apoia sobre aqueles têm a capacidade de transformá-la em realidade“, elocubra.

E o que nossos jovens devem fazer para seguir seu caminho?

Segundo Gaetano, as escolas têm uma missão fundamental. E devem, antes de tudo, contratar professores inteligentes, que levem aos estudantes as questões atuais do mundo, para que entendam que design é uma linguagem, uma expressão pessoal e contemporânea. “Se um criativo lê uma notícia no jornal que lhe toca, deve pegar um material, e trabalhar sobre um objeto que transmita a realidade que lhe toca e testemunhe seu pensamento. E escola deve ser esse local de reflexão, de concentração. Se as escolas conseguirem transmitir isso, o design passará a ser arte universal.”

A CASA DO AMANHÃ

E já que os arquitetos e designers devem criar a partir do tempo e realidade presente, o que muda na casa após essa provação mundial chamada covid 19?

Pesce reflete com profunda consciência e sabedoria. “Lembremos dos eremitas que passavam longos períodos longe de tudo e de todos para assim pensar e refletir em profundidade e, como resultado desse isolamento, foram capazes de criar livros históricos como a Bíblia, o Al Corão”.

Devemos, portanto, ter a possibilidade de nos isolar de tempos em tempos. E a casa seria esse espaço sagrado.

“Hoje estamos sempre em grupos, publicando tudo o que fazemos, na vida pessoal e profissional, nas redes sociais. Nossa personalidade está cada vez mais transparente. Ao invés de protegida, transformou-se em domínio público. Portanto, não é mais forte como deveria ser, para ter capacidade de ler o tempo, descobrir as necessidades do momento”. Segundo Gaetano, a casa de amanhã deve ser aberta a todos, mas no momento necessário, deve ser capaz de se fechar e permitir o isolamento de quem lá vive, para que tenha a serenidade e profundidade de entender o tempo .

“O tempo é extremamente importante. Ele que veicula os novos valores da sociedade. E se não somos capazes de entender esses novos valores, a gente envelhece. Quem não entende os novos tempos, vira um conservador, com ideias velhas, ultrapassadas. Quem olha para frente entende que o tempo propõe sempre novas temáticas que devem ser discutidas, refletidas. Este é também meu trabalho: de prestar atenção ao tempo que evolui, que nos conta fatos que são diversos daqueles que aconteciam no passado. Isto é muito importante”, conclui, emocionado, o mestre Gaetano Pesce.

Grazie Gaetano!

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