Os azulejos de Adriana Varejão
E se as paredes tivessem músculos, sangue e toda a viscosidade da carne de um ser vivo? A arte na sua forma mais visceral, que grita sem ao mesmo ter voz, é uma das características que fazem do trabalho de Adriana Varejão tão único. Nascida no Rio de Janeiro, a artista plástica de 57 anos está entre os nomes mais relevantes da arte contemporânea brasileira, acumulando obras em acervos de diversos museus reconhecidos mundo afora. Na Pinacoteca de São Paulo, acaba de ganhar uma mostra inédita e a mais abrangente de sua trajetória, com mais de 60 obras que datam de 1985 a 2022.
Mas não é só a estética impactante de azulejos cheios de entranhas que consiste o trabalho da artista, visível também no pavilhão dedicado a ela em Inhotim, maior museu a céu aberto do mundo, situado em Brumadinho, Minas Gerais. Suas obras tecem, nas entrelinhas, críticas às feridas deixadas pela história.
A primeira fase de sua produção, no final da década de 80, faz uma imersão no Barroco e coloca, quase que literalmente, o dedo na ferida nos impactos da colonização latino-americana. É daí que vêm os azulejos, simbolizando toda a tradição portuguesa e sua herança, um tanto controversa na visão da artista, para a história brasileira.
Ao trabalho de Adriana vale o destaque para um detalhe técnico primordial: a tridimensionalidade. Suas pinturas também ganham um ar de escultura, são quase palpáveis. Para Jochen Volz, diretor-geral do museu e curador responsável pela mostra, o mais interessante da produção da artista é esta ruptura nas telas, onde surgem feridas, cortes e vazamentos, que escorrem pelas obras e saltam aos olhos de quem as observa.
Está presente na mostra a obra Azulejos (1988), primeiro trabalho a fazer referência à azulejaria portuguesa, inspirado num painel encontrado no Convento de São Francisco, em Salvador. O quadro fica na primeira sala, que traz pinturas do início da carreira, entre 1987 e 1988, exibidas no Brasil pela primeira vez. Muitas delas nasceram após uma visita a Ouro Preto, Minas Gerais, quando Varejão entrou em contato com as igrejas da cidade, se espantou com o excesso visual, e passou a pesquisar sobre o Barroco e a história colonial brasileira. Em outras salas, a azulejaria ganha caráter tridimensional e supostas vísceras.
Outro momento interessante, de um período mais figurativo da artista, representado numa nova sala, são os mapas e paisagens que remetem ao período colonial e à escravidão. Em Mapa de Lopo Homem II (1992 - 2004), o mapa-mundi sugere uma ferida aberta que parte todo o continente africano, deixando pequenos respingos vermelhos por diversos cantos. Essas fissuras são elementos recorrentes, que a artista começou a experimentar a partir de 1992. Outra semelhante é Autorretratos coloniais (1993), em que a artista traz à tona a classificação racial e as pinturas de castas da América Espanhola.
Na mesma sala, dois trabalhos fazem uma reflexão sobre o termo "cor de pele", desconforto notado por ela ao não encontrar tintas assim descritas por fabricantes que não fossem em tons rosados ou de bege. Em Tintas Polvo (2013), Varejão recorre a uma pesquisa do IBGE, que perguntou para diversos brasileiros: "Qual a sua cor?". O resultado rendeu 136 termos, dos quais 33 foram selecionados para integrar uma caixa com conjuntos de tintas renomeadas com as respostas à pesquisa.
Ao todo, há 7 salas dedicadas à mostra, além do Octógono, que dá as boas-vindas a quem entra. Ali, dialogam com a arquitetura de tijolinhos do museu cinco obras da série Ruínas de charque, incluindo dois trabalhos inéditos produzidos especialmente para a individual: Moedor (2021) e Ruína 22 (2022).
Adriana Varejão: Suturas, fissuras, ruínas discorre de uma forma didática a narrativa da artista e convida os visitantes a refletir sobre a forma como as histórias são contadas. Como a própria comenta, num trecho de entrevista descrito nas paredes da mostra: "Minha ferida serve para profanar a história contada pelos vencedores, que têm o estatuto de verdade, para revelar uma história que leva em conta outras narrativas, sob a superfície e à margem da história oficial".
E se ainda faltavam motivos para visitar a mostra, que segue em cartaz até 1 de agosto, aqui vai mais um: a artista bateu um recorde em abril, ao ter uma obra vendida por R$ 6 milhões na feira SP-Arte. O valor atingiu o mesmo patamar dos modernistas da Semana de Arte Moderna de 1922, como Anita Malfatti e Di Cavalcanti.
Serviço:
Adriana Varejão: Suturas, fissuras, ruínas
Período: até 1 de agosto
Entrada: R$ 20 (inteira), R$ 10 (meia entrada). Gratuito para crianças até 10 anos e pessoas acima de 60 anos. Sábado, gratuito para todas as pessoas
Horários: quarta a segunda, das 10h às 18h
Localização: Pinacoteca - Praça da Luz 2, São Paulo, SP