Wabi sabi, enxergando beleza na imperfeição e na transitoriedade
Ao buscar inspiração em outras culturas, podemos desenvolver novas ferramentas para navegar pela vida ao incorporá-las ao nosso repertório. Estar fora do que nos é familiar pode nos proporcionar novas possibilidades ao entrarmos em contato com maneiras diferentes de interpretar o que nos cerca. A sabedoria japonesa wabi sabi pode nos auxiliar, gerando mais contentamento na vida em tempos de comparação desmedida, ansiedade, demanda contínua por aumento de produtividade e excesso de consumo.
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Esse conceito japonês pode ser aplicado imediatamente após a leitura desta coluna em todas as esferas da vida.
Há muito para ser aprofundado sobre o assunto, por isso, optei por focar na introdução do conceito com um viés prático. Procuro apresentá-lo com o intuito de oferecer novas lentes para que você possa usá-las e, no seu ritmo, aprofundar-se caso tenha interesse. Esta partilha se baseia em um livro que li ao me preparar para a minha segunda visita ao Japão: Wabi sabi, de Beth Kempton. Recomendo a leitura.
O wabi sabi incentiva a fazer o seu melhor sem adoecer na busca por objetivos imbuídos de um ideal de perfeição. O conceito japonês nos encaminha para uma ideia de relaxamento, desaceleração, apreciação da vida, percepção de que a beleza pode ser encontrada nos lugares mais improváveis, além da aceitação do caráter provisório de tudo e da experimentação da vida com todos os sentidos. Ele não se propõe a resolver os seus problemas, mas pode ser uma alternativa ao lidar com eles, sugerindo uma maneira diferente de enxergar a vida. Podemos aprender a nos contentar com menos de um jeito que parece mais, o que não significa acomodar-se ou abrir mão dos seus sonhos e ambições. É um convite a atentar-se à possibilidade de reparar na beleza que já existe durante os seus processos.
Comecemos com a definição dos termos, separadamente, antes de juntá-los na sabedoria wabi sabi.
Wabi
Originalmente, a palavra significava simplicidade, pobreza ou aspecto empobrecido. Com o passar do tempo, seu significado se transformou, contemplando gosto suave, apreço pelo simples e sereno, rústico e refinamento austero. A beleza do wabi está presente de forma subentendida dentro da escuridão. Como escreveu o pregador budista Kenko há sete séculos: “Será que devemos olhar a primavera somente no florescer total e admirar a lua apenas quando o céu está claro e sem nuvens?” A beleza não se torna evidente só no que é alegre ou óbvio. Há muita beleza contida na possibilidade, no potencial e na espera.
Wabi implica uma quietude, uma aceitação da realidade e a percepção que vem com isso. É uma mentalidade profundamente conectada à compreensão de que nossas verdadeiras necessidades são simples, além de prezar a humildade e a gratidão pela beleza que já existe na situação em que nos encontramos.
Compreender o termo nos permite perceber que, não importa qual seja a nossa situação, sempre há beleza em algum lugar.
Sabi
A palavra sabi significa visual antigo e simplicidade elegante. Ao longo do tempo, a palavra evoluiu e também passou a comunicar a beleza que surge com a passagem do tempo, a pátina da idade e os sinais da antiguidade. Sabi é uma condição criada pelo tempo, e não pela mão humana. O conceito se inclina para a elegância refinada da idade. É a beleza revelada no processo de uso e decadência.
Embora o conceito seja melhor exemplificado pela passagem do tempo manifestada fisicamente nos objetos, o significado mais profundo indica o que se esconde por baixo da superfície. É uma representação da forma como tudo evolui e perece, podendo evocar uma resposta emocional em nós, geralmente com toques de tristeza, enquanto refletimos sobre a efemeridade da vida.
A beleza do sabi remete à conexão que temos com o passado, ao ciclo natural da vida e à nossa mortalidade.
Wabi sabi
A autora descreve bem este encontro entre ambos: o coração wabi reconhece a beleza sabi, e os dois caminham juntos.
Se você pedir a um japonês que lhe explique o que é wabi sabi, ele provavelmente saberá do que se trata, mas terá dificuldade para formular uma definição. Isso não significa que ele não entenda, e sim que a compreensão é natural e intuitiva.
Wabi sabi vai além da beleza plástica e palpável de um objeto ou ambiente. Sentimos wabi sabi quando entramos em contato com a essência da beleza autêntica, despretensiosa e imperfeita. É uma sensação profundamente conectada ao tipo de beleza que nos lembra o caráter passageiro da vida. É uma aceitação e uma apreciação da natureza inconstante, imperfeita e incompleta de todas as coisas. É o reconhecimento do presente que é a vida simples, lenta e natural, que se transforma, muda, envelhece e finda.
Compreender e sentir wabi sabi pode nos ensinar a abrir mão da perfeição e a nos aceitar como somos. Esses preceitos nos lembram de procurar a beleza no cotidiano, permitir que ela nos mova e, ao fazer isso, a sentir gratidão pela vida em si.
O wabi sabi é um lembrete de que simplicidade, beleza e quietude podem nos fazer mergulhar totalmente em um instante, no meio de qualquer tarefa. Tudo é transitório, incompleto e imperfeito, incluindo a vida em si. Portanto, a perfeição é impossível e a imperfeição é o estado natural de todas as coisas.
Wabi sabi é um convite a prestarmos mais atenção em como vemos e o que sentimos e não apenas o que vemos.
Exemplos de situações que nos fazem sentir wabi sabi
Antes de citar exemplos japoneses, compartilho alguns exemplos mais próximos a nós.
Sinto o wabi sabi toda vez que contemplo os galhos craquelados e marcados da jabuticabeira. Toda vez que os vejo, sei que logo mais ali brotarão flores que, na sequência, se transformarão em jabuticabas e, em poucos dias, muitos passarinhos virão comê-las. Em seguida, os mesmos troncos voltarão a ficar sem flores ou frutos e com novas marcas. Por vezes, me pego olhando para esses galhos e imaginando todo o processo, enxergando beleza na ausência e na espera, e sentindo gratidão pelo que está por vir. Uma pausa que ajuda a acalmar os pensamentos.
Bala de doce de leite no tacho embalada em palha seca, pamonha na folha do milho, doce de buriti embalado na caixinha feita com a madeira do próprio buritizeiro, cachaça embalada na palha, tacacá na cuia, farinha de Bragança embalada na folha e palha e o peixe assado na folha de bananeira. Esse tipo de embalagem natural é irregular e única, traz apelo visual, tátil, olfativo e gustativo quando em contato direto com o alimento.
O wabi sabi é um conceito intimamente conectado à natureza. O Japão é um país que vivencia as estações do ano de forma bem demarcada. E dentro das próprias estações há eventos como a época das chuvas, o cantar das cigarras e o florescer de vários tipos de flores que ajudam a indicar os meses. Na cultura e na arte, a percepção da passagem do ano é interpretada e expressa através da ausência de algo que estava aqui e não está mais; e a ideia de algo que é, mas logo não será mais.
Visitei o país pela primeira vez durante o outono. Lembro de ter visto caquis pendurados e em processo de desidratação espalhados por todos os lugares. Testemunhei a mudança das cores das folhas das árvores, que foram do verde-claro que brotaram na primavera e escureceram durante os meses do verão para o amarelo que se alaranjou, avermelhou e se tornou marrom antes de cair. Uma mudança percebida e sentida tanto na escala de uma única árvore quanto em um horizonte distante com montanhas, florestas e rios. Impermanência e transitoriedade que se manifestam através da profusão de cores e nos lembram da finitude de tudo e da renovação dos ciclos.
Um dia fui passear pelas ruas de Arashiyama, em Quioto. Ao final da caminhada, cheguei a uma casa de chá que preservava a arquitetura da era Edo. Lá, pedi uma tigela de matcha e mochi. Uma cerâmica irregular foi escolhida para os mochi. Ao lado, um pequeno punhado de açúcar mascavo e uma folha de árvore para ser usada como colher junto a um galho a ser usado como garfo. Imediatamente, lembrei-me de uma vivência com uma ceramista nipo-brasileira que me contou que quando pequena, na chácara, um dia foi comer jaca com a família mas eles se viram sem talheres. Sua avó, japonesa, foi ao quintal e recolheu grandes folhas e diversos galhos. Após higienizá-los com água, as folhas foram postas no chão e usadas como pratos e os galhos se transformaram em hashi.
Existe uma palavra linda em japonês para se referir ao efeito da luz solar filtrada pelas folhas das árvores: komorebi. Esses padrões mudam de forma a cada segundo. Essas sombras projetadas e em movimento tocam o chão, encostam-se em templos e acariciam nossas mãos. Cada momento é único e finito. A foto que ilustra essa coluna é um desses momentos.
Há um jeito lindo de sinalizar que um lugar não pode ser acessado em japonês. Seja um caminho a não ser percorrido, seja uma área para não se sentar, os japoneses usam uma pedra com uma corda amarrada para indicar que a partir daquele ponto o local está fora do nosso alcance. Mimetizado à natureza é um código cultural amplamente compreendido.
Outro exemplo lindo, extraído diretamente do livro, é quando a autora descreve ter conhecido o trabalho de uma ceramista por quem se encantou pelas peças. Um dia, ela perguntou à artista sobre as suas escolhas estéticas e a artista respondeu que, além dos materiais, formas e cores a serem apreciadas por sua plasticidade, a artista acredita que o cliente completa a beleza de cada objeto ao usá-lo. Ela, propositalmente, crê que a peça é vendida incompleta, assumindo que as futuras memórias e o envelhecimento irão completar a cerâmica.
A beleza japonesa é descoberta pela vivência, não apenas pelo olhar.
Wabi sabi como estética
Para além do conceito, grande parte da camada palpável que facilita a conexão com a parte emotiva do wabi sabi acabou sendo retirada do contexto, esvaziada de significado, agrupada e interpretada como uma estética wabissabiana, como adjetiva a autora. O processo de globalização, as diversas tentativas de traduzir o conceito sob lentes não japonesas e o consumo excessivo acabaram contribuindo para a mercantilização do wabi sabi como produto.
No Ocidente, essa tentativa de interpretação do conceito passou a ser equivocadamente associada a uma “filosofia oriental” sobre a qual, na verdade, pouco se sabe mas pega bem citar e é, primeiramente, reconhecida através da materialização em objetos que seguem uma estética específica do que se acredita ser japonês, fixando-se em formas orgânicas e materiais naturais. Consequentemente, por se basear na aparência, o termo é difundido como a manifestação dessa estética orientalista em produtos. Enquanto isso, a sensação que experimentamos através de todo e qualquer objeto ou vivências, que é o real cerne do conceito, passa a ser secundária, quando lembrada, à beleza plástica.
Não é um problema gostar da estética wabissabiana durante a jornada de compreensão do wabi sabi. Entretanto, é importante aprender que seu real significado reside além da superfície. Esses objetos são meios que nos ajudam a lembrar da natureza efêmera e imperfeita da vida, não um fim desprovido de sentido. Isso nos leva, também, a aceitar que a estética do objeto não precisa, necessariamente, ser associada ao Japão; afinal, essa sabedoria lança luz sobre o sentimento despertado, e não sobre o objeto.
Reconhecer e sentir wabi sabi é algo que podemos aprender. Lembre-se: não é uma questão do que se vê, mas como se vê.
E você, já sentiu wabi sabi? O que desperta em você o sentimento de wabi sabi? Compartilhe nos comentários.
Acho que tudo isso nos convoca a verdadeira presença, diariamente, e em qualquer lugar ou circunstância, como foi lindamente escrito. Adorei o artigo !
Alê, antes de tudo, agradeço pelo encanto que seu jeito manso e profundo nos presenteia. Seu Ser e seu "olhar" nos transporta direto pro cerne da Vida. Como uma meditação.Tudo de bom!
Foi o conceito de wabi sabi que me libertou de um perfeccionismo atormentador e persistente. Seu artigo, Ale, veio trazer ainda mais luz para mim, por sua forma tão sensível de traduzir em palavras um conceito tão profundo e sutil!
Obrigada! Obrigada também pela indicação do livro de Beth Kempton. Um forte abraço!
Parabenizo o Archtrends por tê-lo como seu colunista! 👏👏👏
Tenho observado cada vez mais à presença desse olhar/conceito ao meu redor. No meu jardim então...todos os dias. Inclusive tenho uma jaboticabeira no vaso, sempre tenho novos ciclos, já não são só anuais. Agora nas ruas vejo os ipês maravilhosos...é uma explosão de beleza e daqui à pouco será outra beleza ver seu tronco rústico e cascudo. Adorei a pedra como um presente, alertar quanto ao limite, vou adotar! Gratidão pelo lindo texto e pela partilha do conteúdo cultural. Abraço à todos os envolvidos.🤩💐🙏💫