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(Foto: Acervo Beiral - Estúdio de Arquitetura)

A reforma acontece na casa e também dentro da gente

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18.04.2024
As arquitetas da Beiral refletem sobre como um projeto de reforma está ligado à história e às emoções dos moradores
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Foi durante uma despretensiosa conversa com uma cliente que nos emocionamos e fomos atravessadas com o tema deste artigo. Trabalhar com arquitetura é, muita das vezes, nos concentrarmos na parte mais palpável do nosso trabalho: material, concreto, tijolo, vidro, desenho e maquete. Só que nesse dia, querido leitor, fomos lembradas da importância da relação interpessoal no nosso processo criativo, ao recebermos um agradecimento por termos olhado com tanta generosidade para a casa dessa cliente, sua casa de infância, o lar da família há muitas décadas.

Para ouvir o artigo completo, clique no play abaixo:

casa com janela em arco
(Foto: Acervo Beiral - Estúdio de Arquitetura)

Se fecharmos os olhos agora e tentarmos pensar em nossa lembrança mais antiga dentro de casa, certamente nos recordaremos do quintal, palco de várias brincadeiras, da sala de estar e jantar onde aniversários e reuniões familiares aconteciam. Alguns lembrarão de seus quartos, dos riscos na parede para marcar a altura das crianças, de um cantinho do piso que precisava de conserto e foi ficando, o tempo foi passando...

Gaston Bachelard sabiamente escreveu: “a casa não vive somente o dia-a-dia, no fio de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos. Quando, na nova casa, voltam as lembranças das antigas moradias, viajamos até o país da Infância Imóvel, imóvel como o Imemorial.”

Conhecer uma família e chegar a uma casa que será reformada demanda atenção e um grande esforço emocional. Nos conectarmos a essas pessoas, entendermos de que modo aquele lugar abriga as suas manifestações de vida, tudo isso faz parte do nosso trabalho. No momento em que divide as informações conosco, essa família revisita o passado e suas memórias enquanto projeta planos para o futuro. São nascimentos, mortes, alegrias, tristezas, conquistas, aprendizados, encontros, separações físicas e emocionais, todos esses sentimentos dão sentido àquele lugar.

Decidir reformar sua moradia e se colocar disponível para essa mudança é também estar aberto a uma mudança muito maior, externa, no campo físico e material, e internamente, ao lidar com sentimentos e memórias. E é por isso que quando somos convidados a transformar uma casa precisamos chegar com calma, cuidado, entender que somos o elemento externo e que será necessário mais ouvir do que falar.  

Quem já fez uma “faxina para organizar as ideias” consegue entender que existe uma relação entre o que está dentro e o que está fora. Certamente a casa é o espaço ao qual estamos mais intimamente conectados.

Vivemos fixações, fixações de felicidade. (1) Reconfortamo-nos revivendo lembranças de proteção. Alguma coisa fechada deve guardar as lembranças deixando-lhes seus valores de imagens. As lembranças do mundo exterior nunca terão a mesma tonalidade das lembranças da casa. 

(A casa. Do porão ao sótão. O sentido da cabana. Gaston Bachelard, A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000.)

Talvez seja por isso que mudar uma casa seja também um passo na direção de olhar para as pessoas que construíram sua história ali e as relações que o espaço abriga.

Uma casa mantida em situação inadequada, sem cuidados, desconfortável, muita das vezes é um reflexo de necessidades pessoais que também ficaram em segundo plano. Os motivos podem ser vários: a urgência de resolver outras questões, a dificuldade em se movimentar, a impossibilidade de resolução, a tristeza, o luto e tantos outros.

Algo que aprendemos ao longo dos anos, encontrando tantas famílias e clientes muito especiais, é que a reforma residencial não é para pessoas apressadas. Definir o que vai e o que fica, muito além da técnica para avaliar as condições da edificação, exige sensibilidade, demanda tempo para que seus moradores estejam prontos para absorver as mudanças, viver novas experiências, se despedir de algumas coisas e dar boas-vindas a outras.  

Para o arquiteto pode ser difícil trabalhar no papel de coadjuvante, pois terá que lidar com uma construção existente carregada de história e memórias. O segredo está em melhorar o que já existe, articular o novo e o antigo, decidir o que vale a pena ou não manter, identificar elementos que tornam essa casa única. Estamos falando de casas comuns que precisam ser respeitadas para que aquele pequeno grupo de pessoas continue se conectando e se reconhecendo naquele lugar.

E neste momento não existe uma receita de bolo para pensar a reforma, afinal, cada família estabelece relações diferentes com a construção. Em alguns casos, as pessoas querem e precisam de mudanças mais radicais. Em outros, uma intervenção comedida é o melhor caminho para que o morador se sinta bem novamente naquele lugar.

Como descobrir o caminho a seguir? Tendo disponibilidade para escutar o que o outro tem a dizer.

Do lado de cá vale também o olhar carinhoso para as criações de colegas de profissão que por vezes são julgados ao compartilhar o resultado de seus trabalhos, sobre o que deveria ou não ter sido feito. Como julgar o “certo e errado” de um projeto se conhecemos apenas parte do processo, sem saber da história daquelas pessoas e suas moradias? É impossível fazer uma análise embasada visualizando apenas o resultado final!

Enquanto escrevíamos este artigo chegou até nós uma história: Uma mãe perdeu seu único filho há pouco mais de um mês. Imersa na tristeza e nas lembranças da vida na casa da família, seus amigos se reuniram para um mutirão. O mutirão envolvia ajudar em pequenos reparos da casa, como pintura da fachada, objetos novos para decorar a sala, reparos de rachaduras, infiltrações, talvez um pouco de cor em alguma parede… 

casa antiga com janela de arco e tijolinhos na fachada
Foto: Acervo Beiral - Estúdio de Arquitetura

A arquitetura é transformadora. Embora não sejamos capazes de salvar ninguém de suas próprias dores, é preciso acolher e ser parte da escuta do outro. Até que ponto nosso trabalho consegue ajudar? 

Esse texto é um agradecimento a nossa cliente, que despertou essa reflexão em nós, e a tantas outras pessoas que passaram por nossas vidas e deixaram um pouco de si, em cada canto das nossas casas e de nossas memórias.  Somos feitos de história! 

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  1. Sempre com textos tão sensíveis e com temas pertinentes. As ideias de vocês são sempre cirúrgicas e inspiram o melhor da profissão. Parabéns!

  2. Que texto mais emocionante! ❤️❤️ Sensacional meninas! Admiro muito vocês, parabéns por esse trabalho tão sensível e respeitoso. Isso é arquitetura de verdade!

  3. Muito bom,impactante e muita emoção. No final das contas parece tudo conectado né ...?Até a saúde mental depende do espaço onde se vive.❤️🥲

  4. Que texto lindo, cheio de emoção! Que sensibilidade! Parabéns! 👏🏾👏🏾👏🏾



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