Diante de um caso de racismo, é comum que a pessoa que cometeu o ato seja considerada “malvada”, “ruim” ou “perversa”. Entretanto, atrelar uma atitude racista à intenção de prejudicar alguém não é a melhor forma de combater esse problema.
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Primeiramente, se partirmos da ideia de que o racismo é algo sempre intencional ou motivado por maldade, vai ser difícil entender como pessoas que admiramos podem, também, ser racistas. Precisamos reconhecer, portanto, que até mesmo aquela colega de trabalho divertida e respeitosa pode vir a cometer um ato de racismo.
Outro motivo pelo qual não é eficaz relacionar o racismo a intenções maldosas é que esse ponto de vista desconsidera uma questão bem mais ampla. Costuma ser mais fácil para o sistema, de modo geral, punir individualmente pessoas que cometeram racismo, como se isso fosse capaz de resolver o problema, o que é uma ilusão. Essas pessoas não devem ser vistas como uma falha da sociedade, mas sim como uma consequência óbvia da forma como essa mesma sociedade se estruturou.
O que é racismo estrutural?
Racismo estrutural é o termo utilizado para mostrar que o racismo está enraizado em nossa sociedade, ou seja, no direito, na economia, na ideologia, na política. Ele se mostra a partir de práticas, hábitos e falas cotidianas, tanto de forma consciente, como inconsciente. Isso significa que, se o país onde vivemos foi construído com base em ideais racistas, o racismo deixa de se expressar como uma anormalidade e se torna um componente significativo que escancara como as relações sociais foram historicamente construídas em nosso país.
Desse modo, é imprescindível compreender como o racismo se imbrica na ordem social, analisando-o como uma questão estrutural. É o que explica o advogado, filósofo e professor Silvio Almeida em seu livro Racismo estrutural, que compõe a série Feminismos Plurais. A partir dessa leitura, que aproveito para deixar como recomendação importante para construirmos cada vez mais uma postura antirracista, compreendemos que o racismo não tem a ver com comportamentos individuais vinculados à maldade, mas ao resultado do funcionamento normal de uma sociedade fundada na hierarquia racial.
Vamos analisar um exemplo?
Quando uma empresa exige que uma mulher negra alise o cabelo para ser contratada, é notável que houve racismo. Entretanto, para além da atitude da empresa, é importante observar como esse caso se insere em um contexto maior que reverbera outros tantos casos parecidos. Não se trata de relevar a atitude racista individual, muito pelo contrário: trata-se de puni-la, compreendendo que ela se repete em outros locais e que, portanto, a punição sozinha não consegue resolver o problema em sua totalidade.
No exemplo citado, para além da denúncia, é importante que a sociedade reflita sobre o que faz com que cabelos crespos e cacheados sejam marginalizados. Afinal, crescemos em um país que por muitos anos considerou cabelos com essas texturas como ruins. Essa constatação não é biológica, nem universal: ela evidencia uma ideologia racista que impera no Brasil desde a época da escravidão. É a partir da consciência que se tem desse contexto, portanto, que se pode pensar em medidas que vão além da denúncia e que enfrentem, de forma eficaz, o racismo.
Essa frase, que a artista e teórica Grada Kilomba escreveu em seu livro Memórias da Plantação, ressalta que, mesmo após tanto tempo, as consequências da colonização persistem. Para entender o racismo incrustado na estrutura de nossa sociedade, é necessário compreender como chegamos até aqui.
Durante mais de três séculos de escravidão, pelo menos 4,8 milhões de pessoas africanas foram trazidas para o Brasil. Inicialmente, foram escravizadas para trabalhar nos engenhos de açúcar, principal produto de exportação da época. Com o passar dos anos, o comércio transatlântico de africanos se tornou tão lucrativo que as pessoas trazidas para cá deixaram de ser apenas mão-de-obra e se tornaram a própria mercadoria.
Pessoas foram escravizadas única e exclusivamente por conta de sua raça. Cor da pele, textura do cabelo, local de origem, idioma e outros elementos culturais foram inseridos numa lógica hierárquica na qual tudo o que remetia aos africanos passou a ser desvalorizado pelo sistema.
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Uma série de preconceitos a respeito do continente africano que vinham sendo elaborados desde a antiguidade e a necessidade de lucrar formularam a justificativa que os colonizadores precisavam para fincar a escravidão na base de nossa história. Tal ideologia fez com que africanos e afro-brasileiros fossem desumanizados e considerados, inclusive juridicamente, como coisas. A partir dessa premissa racista, essas pessoas foram comercializadas como objetos, abdicadas de direitos e tratadas como seres sem alma.
Como o historiador Boris Fausto aponta em seu livro História Concisa do Brasil, a escravidão foi uma instituição nacional que se inseriu na sociedade e condicionou sua forma de agir e pensar. Além disso, a falta de apoio ou indenização após a abolição da escravidão (considerada “uma mentira cívica” pelo professor e ativista Abdias do Nascimento), a persistente perseguição a pessoas negras e a falta de oportunidades explicam inúmeras desigualdades às quais essa população é submetida atualmente.
Feridas abertas: as consequências do passado em números
O resultado da marginalização de pessoas pretas e pardas no decorrer da história pode ser observado no cenário do mercado de trabalho, que reflete essas desigualdades até hoje. Afinal, pessoas negras continuam sendo a maioria da população desempregada no Brasil. É o que mostra a pesquisa divulgada em novembro de 2022 pelo FGV Ibre - Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, coordenada pela economista Janaína Feijó. Com base em microdados da última PNAD Contínua (IBGE), o estudo mostrou que, dos 9,5 milhões de desempregados registrados no terceiro trimestre deste ano, cerca de 64,9% eram pretos e pardos. Além disso, o levantamento revelou que pessoas negras:
- representam 61,3% dos trabalhadores que ganham até dois salários-mínimos;
- somam 24 milhões dos 39,1 milhões de trabalhadores que estão na informalidade;
- possuem rendimento médio de R$ 2.095, enquanto entre trabalhadores brancos e amarelos esse número chega a R$ 3.533.
Indicadores de violência também revelam a estrutura racista brasileira. Em quase todos os estados brasileiros, uma pessoa negra tem mais chances de ser morta do que uma pessoa não negra. É o que revela a pesquisa Atlas da Violência, publicada em 2021 pelo Ipea - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Segundo o estudo, a taxa de violência letal contra pessoas pretas e pardas em 2019 foi 162% maior que a mesma taxa contra pessoas não negras. Além disso, pessoas negras representaram 77% das vítimas de homicídios no país.
O relatório associa diversas causas a esses dados, dentre elas: as condições socioeconômicas e demográficas às quais muitas pessoas negras são submetidas, limitando seu acesso a melhores condições de vida; a reprodução de estereótipos racistas pelas instituições do sistema de justiça criminal que fazem de pessoas negras o principal alvo de ações policiais; a ausência de políticas públicas específicas que combatam as desigualdades sofridas por essas pessoas.
Combater o racismo de forma efetiva
O panorama de desigualdade racial presente no Brasil não é de hoje, mas fruto de uma sequência de medidas racistas, bem como a insuficiência de medidas antirracistas, no decorrer da história do país. É possível concluir, a partir desse resgate histórico e análise de alguns dados atuais, que a construção de uma sociedade mais igualitária não pode ocorrer somente por meio de denúncias pontuais de casos de racismo.
Nesse sentido, é necessária uma reestruturação mais ampla, que implique em práticas antirracistas no dia a dia de cada um de nós e em cada instituição. Alguns exemplos são a implementação de leis como a Lei de Cotas, que reservou no mínimo 50% das vagas das instituições federais de ensino superior e técnico para estudantes de escolas públicas (e, dentro dessa porcentagem, uma parte para pessoas pretas, pardas e indígenas) e a Lei 10639, que estabeleceu diretrizes para a inclusão da disciplina História e Cultura Afro-Brasileira no currículo da rede de ensino.
É comum que digam que “a história cobra”, como uma forma de se ausentar das discussões e mudanças sociais. Entretanto, se tem algo que a nossa sociedade demonstra diariamente é que a última coisa que a história fez todo esse tempo foi cobrar. Somos nós que devemos participar dessa profunda alteração social e o primeiro passo é se ver como parte do problema - e da solução. O racismo não desaparecerá sozinho.