Bancos divididos por barras de aço, degraus com parafusos expostos e pedras debaixo de viadutos. Você já deve ter visto essas imagens em sua cidade. Mas alguma vez se questionou por que esses elementos estavam ali? Eles são algumas das marcas da arquitetura hostil, um modo agressivo de dividir espaços urbanos e jogar contra as pessoas.
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As contradições de cidades grandes como São Paulo, Rio de Janeiro, Paris, Nova York ou Londres se comparam em algumas frentes. Alguns exemplos são os problemas sociais e desafios de urbanismo. Nesses campos, quando o Estado não dá conta de atender aos mais vulneráveis, parte para soluções hostis.
Neste artigo, você saberá o que é a arquitetura que hostiliza as pessoas mais vulneráveis e também os demais cidadãos. Além disso, verá quais são suas principais formas de utilização, seus impactos, exemplos e as possíveis alternativas para não a usar. Continue a leitura!
Como a arquitetura hostil surgiu?
O termo "arquitetura hostil" foi cunhado no artigo Anti-homeless spikes are part of a wider phenomenon of 'hostile Architecture', que em tradução livre fica As pontas de ferro antidesabrigados são parte de um fenômeno amplo de "arquitetura hostil".
A matéria foi escrita pelo repórter Ben Quinn para o jornal inglês The Guardian. No texto, publicado em 2014, o autor abordava como o design de algumas cidades impedia os moradores de rua de se abrigarem em locais públicos.
O artigo argumentava principalmente que o Estado, quando não consegue resolver suas falhas na atenção aos mais vulneráveis, tende a empurrar as pessoas que considera inadequadas para fora. Isso traz a ilusão de uma cidade organizada e sem problemas sociais aos outros cidadãos.
Quais são as marcas mais aparentes da arquitetura hostil?
O que a arquitetura hostil também causa é um afastamento da convivência em espaços públicos e privados de uma cidade. E essa hostilidade planejada tem suas marcas em diversos pontos estratégicos, que podem ser sutis ou explícitas.
Centros de compras destinados a um público de maior poder aquisitivo
Na área privada, pode-se dizer que ruas comerciais e shoppings demonstram hostilidade às pessoas pelo critério do poder de compra.
Na arquitetura hostil, existe um viés para "tratar mal" as pessoas que não trabalham e não consomem.
Tais centros, com lojas de produtos de alto valor, se destinam exclusivamente às classes mais abastadas. Nesse sentido, quem não tem condições de comprar esses itens fica excluído de circular no local.
Espinhos e pontas de aço em degraus e beirais
Degraus, beirais de canteiros e de janelas são preenchidos com espinhos de aço e outros formatos incômodos que impedem que as pessoas fiquem nesses locais — sejam deitadas ou em pé.
Chapas de aço na frente de lojas e comércios
Chapas nas portas de comércios servem para impedir a entrada de veículos para roubos, mas também não deixam ninguém ficar na área enquanto o estabelecimento está fechado.
Bancos com design "antimendigo"
Bancos tortos em lugares públicos parecem ter um design estiloso e criativo, mas eles escondem em seu cerne a arquitetura hostil.
Fachadas sem marquise
Na arquitetura hostil, as marquises são eliminadas para acabar com a possibilidade de alguém se abrigar debaixo delas, principalmente em dias de chuva ou calor.
Goteiras estratégicas
Alguma vez, enquanto você andava debaixo de um prédio, sentiu um pingo de água e pensou "é do ar-condicionado"?
Pois isso é feito de propósito, para que qualquer pessoa que transite por ali tenha esse incômodo e não permaneça na área.
Além dos pingos constantes, como o chão do local fica sempre úmido, acaba afastando qualquer pessoa de se abrigar à noite.
Pedras
A arquitetura hostil coloca pedras e blocos de concreto debaixo de viadutos e outro locais para impedir que moradores de rua construam tendas improvisadas.
Pisos desnivelados
O desnível nos pisos de alguns locais privados e públicos, quando não é feito por uma necessidade construtiva do terreno, tende a ser projetado para ser hostil.
Dessa maneira, fica impossível que trabalhadores de rua usem o local, transeuntes fiquem conversando na área e, principalmente, desabrigados deitem no chão.
Guarda-corpos
Barras de aço e de outros materiais que formam um caminho a ser percorrido ou impedem a permanência de pessoas em uma área são exemplos de arquitetura hostil.
Esse design, que parece proteger as pessoas de acidentes em escadas e canteiros, muitas vezes é usado para o objetivo oposto: o de preservar o local.
Grades
As grades são instaladas em fachadas de edifícios, ao redor de canteiros de jardins e em qualquer outro local onde não se deseja a aglomeração de pessoas.
Como a arquitetura hostil impacta uma cidade?
A arquitetura hostil tem como principal objetivo excluir moradores de rua e usuários de drogas de buscarem um refúgio em meio aos centros urbanos.
Mas ela também tem outros alvos: skatistas, artistas de rua e quaisquer usuários de espaços públicos e privados que ultrapassem uma "linha demarcada".
Skatistas usam escadarias, bancos de praças, beiradas de muros e outros obstáculos de ruas para fazerem manobras. Esse modelo de construir retira qualquer possibilidade de se aproveitar essas áreas para praticar o esporte.
Em outra frente, a arquitetura hostil também se mostra contra artistas de rua. Vale lembrar que eles usam os espaços públicos para se acomodarem enquanto aguardam o próximo público aparecer — seja no semáforo, na calçada, na saída da estação de metrô etc.
A arquitetura hostil vai contra conceitos de convivência, como o das cidades caminháveis, que exploram ao máximo o uso de espaços urbanos por todos.
A mensagem que esse design transmite é "não quero você aqui". A resposta das pessoas é sempre se afastar e desorganizar.
Quais são os exemplares mais famosos de arquitetura hostil?
Exemplos de arquitetura hostil estão espalhados pelo mundo. Inclusive, há alguns que são conhecidos por serem alvos de notícias, apontando as falhas que essa "solução" traz.
Pedras sob o Viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida (São Paulo)
No final de 2020, os pés do Viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida, na zona leste de São Paulo, receberam pedras em toda sua extensão. Isso impedia os moradores de rua de se abrigarem no local.
O Padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua, quebrou as pedras a marretadas. Assim, mostrou que a ação ia contra os mais vulneráveis, que a sua rede de acolhimento ajuda com alimentos em ações semanais.
Bancos com barras, das Cortes Reais de Justiça (Londres)
O design dos bancos que ficam em frente às Cortes Reais de Justiça de Londres tem saliências estratégicas. Esse desenho, com barras ao longo da peça, impede que muitas pessoas usem o espaço ao mesmo tempo.
"Chuveirinho" no Cinema Roxy (Rio de Janeiro)
Em 2007, a entrada do Cinema Roxy, um dos mais antigos do Rio de Janeiro, recebeu um dispositivo batizado popularmente de "chuveirinho".
Um cano percorria a marquise do edifício em Art Déco. Ele tinha furos estratégicos, por onde a água era despejada. Isso era feito por acionamento interno dos funcionários do prédio.
Bancos disformes de Camden Town (Londres)
No distrito londrino de Camden Town, os bancos disponíveis ao público têm um design todo disforme. Isso impede que moradores de rua se deitem e que skatistas façam manobras.
Quais são as principais alternativas à arquitetura hostil?
Para evitar ao máximo a arquitetura hostil a curto prazo, é preciso partir para soluções que não tenham relação com esse design incômodo.
No entanto, o objetivo desejável a longo prazo deve ser eliminar a necessidade, tanto pública quanto privada, de excluir pessoas da convivência nas cidades.
Veja alguns dos principais meios para conquistar uma cidade mais inclusiva e democrática, em termos urbanísticos, sociais e econômicos:
- elaborar programas consistentes de saúde pública para dar apoio aos dependentes químicos;
- fornecer assistência social condizente com as necessidades mais urgentes das pessoas;
- criar e executar políticas públicas de acolhimento habitacional;
- melhorar as políticas de diminuição de desigualdade social;
- reformar e atualizar espaços públicos;
- estimular a economia local.
A arquitetura hostil não foi desenvolvida por nenhum arquiteto ou designer de interiores como um movimento cultural. Ela é a prova mais concreta de que os poderes público e privado não conseguem atingir um equilíbrio para oferecer as mesmas oportunidades a todos os cidadãos.
Em tempos de pandemia, a relação das pessoas com cidades e casas exige ainda mais mudanças. Descubra as transformações no convívio urbano e nas residências neste artigo!