Frutos da Amazônia
Ter orgulho da sua terra, do seu povo, da sua origem e ter a coragem de investir tempo e dinheiro na valorização de seu legado é para poucos. Não é todo dia que nos deparamos com projetos dessa natureza, ou que conhecemos as pessoas por trás deles. Mas eu sou agraciada! Por conta da minha profissão de jornalista e curadora, da minha curiosidade insaciável e intuição apurada, tenho a sorte de conhecer, me conectar e divulgar vários desses exemplos. Então, aproveito esta minha coluna para compartilhar a emocionante iniciativa que acaba de ganhar o prêmio ELLE DECO BRASIL DESIGN AWARDS, o EDIDA BRASIL 2024, na nova categoria Projeto Social.
Bom, nada acontece por acaso. Ano passado fui pela primeira vez a Tiradentes, MG, visitar a Semana Criativa, festival de design e artesanato que acontece no local desde 2017, fundado pela minha ex-colega da Editora Globo, Simone Quintas. Passei menos de 48 horas na cidade e tentei aproveitar o tempo ao máximo para visitar as exposições e conhecer a cidade histórica.
Em uma das visitas, a arquiteta Bel Lobo me apresenta dois jovens arquitetos de Belém do Pará, que palestrariam com ela no dia seguinte, quando eu já não estaria mais na cidade. Eles me contam brevemente sobre a pesquisa que haviam começado três anos antes junto aos povos ribeirinhos de sua terra natal, e eu fico encantada.
Pablo Vale e Luis Guedes, de 30 e 37 anos de idade, arquitetos nascidos, criados e formados em Belém, fundadores da Guá Arquitetura, perceberam que a riqueza da carpintaria amazônica presente no maior arquipélago flúvio-marítimo do mundo, na região do Marajó, que conta com mais de 2500 ilhas, estava correndo sério risco de extinção. As tradicionais casas coloridas feitas em madeira com lindas fachadas entalhadas à mão vinham sendo substituídas por habitações em alvenaria branca e sem personalidade, e o ofício de carpinteiro perdendo seu valor para as novas gerações, que não se interessavam em seguir na profissão ou mesmo construir sua morada em madeira.
A equipe da Guá Arquitetura começou, então, a catalogar através de registros fotográficos e de vídeo, as casas ribeirinhas, e assim, conhecer de perto a realidade de seus carpinteiros, “os verdadeiros guardiões do conhecimento vernacular ribeirinho”, nas palavras de Pablo e Luís.
A primeira parte do projeto foi a criação de um site chamado “Carpinteiros da Amazônia”, com o objetivo de divulgar esse trabalho documental. Mas isso não parecia ser suficiente para revitalizar a arte desses mestres.
A dupla teve então a ideia de aplicar a arte da carpintaria ribeirinha em peças de design, para assim poderem ter uma escalabilidade maior do que a construção de casas. Foi aí que nasceu o projeto “Pallas”, cuja logomarca também criada pela Guá Arquitetura, remete às palafitas das casas.
Pablo e Luís convidaram alguns arquitetos e artistas renomados como a carioca Bel Lobo, e os paulistanos Jay Boggo, Clara Figueiredo e Gabriel Kogan, para trabalharem junto com eles, a quatro mãos com os mestres carpinteiros, e assim desenvolverem uma linha de mobiliário colaborativo. Esses criativos da região fizeram uma imersão no Estado do Pará para conhecer de perto a floresta amazônica, sua cultura, seu povo e a realidade local, e interagir com os mestres cuidadosamente selecionados pela equipe da Guá Arquitetura para o projeto Pallas.
O processo criativo das peças foi orgânico, fluido e acima de tudo respeitoso. Antes de qualquer rabisco no papel, Bel, Jay, Clara e Gabriel, buscaram conhecer as características da arte de cada mestre, suas habilidades e histórias, e trocaram muitas ideias sobre a peça que criariam juntos. E dessa imersão, cuja direção de arte foi orquestrada por Pablo e Luís, nasceram cinco itens de mobiliário.
Jay Boggo, artista visual e estilista, desenvolveu com Mestre Edson, carpinteiro da ilha Murutucu, uma peça de forte apelo estético: um banco cujo encosto-escultura, entalhado por Edson na forma das ondas do Rio Guamá, tem também a função de cabideiro.
Mestre Oseas, carpinteiro botânico do Lago da Água Preta, em Aurá, Belém, é especialista dos tetos de palha das moradas ribeirinhas. Observando seu trabalho, a fotógrafa multiartista Clara Figueiredo e o arquiteto Gabriel Kogan propuseram a Oseas a criação de um biombo em palha trançada a mão, emoldurada em madeira, a fim de explorar as texturas dos materiais naturais.
Mestre Valdiley, nascido na Vila do Céu, na ilha do Marajó, trabalhou com Bel e suas sócias na M.O.O.C. – Moveis, Objeto e Outras Coisas, e juntos criaram uma estante auto-portante cujas estruturas verticais nasceram dos sinuosos guarda-corpos das casas de Valdiley. A turma da M.O.O.C. também buscou aplicar as cores vivas das habitações ribeirinhas na peça.
Já a dupla da Guá Arquitetura contracenou com dois outros carpinteiros. Com Josa, o mestre dos famosos caqueados da região, habitante do Furo do Benedito em Acará, PA, desenvolveram uma mesa de centro com tampo em marchetaria e os pés reproduzindo as palafitas das casas de Josa.
E com Mestre Edinaldo, da ilha do Murucutu, eles construíram uma poltrona cujos braços que dão forma à sua estrutura, reproduzem as linhas paralelas dos caqueados de Edinaldo.
Parte fundamental nesse processo foi a participação da VEDAC, empresa paraense que resgata madeiras de lei desprezadas pela indústria tradicional devido a “imperfeições” orgânicas que impactam a uniformidade da matéria-prima e, ainda, comprova a origem de cada peça de madeira - extraída pelo manejo florestal sustentável - através de QRcode. A VEDAC não apenas forneceu a madeira para a execução dos primeiros protótipos executados pelos mestres, como será a fabricante das peças em escala.
Tive a oportunidade de apresentar essas peças em primeira mão durante a DW! Design Weekend São Paulo em março deste ano, em uma linda instalação no Home&Design do Shopping Cidade Jardim.
As peças resultantes não são apenas belas e utilitárias, mas carregam histórias, ancestralidade e muita emoção. O objetivo principal da coleção é gerar visibilidade para a carpintaria amazônica e renda para os carpinteiros participantes.
Mas, para além disso, o projeto Pallas pretende financiar uma série de ações com o propósito de difundir e multiplicar a aplicação das técnicas de carpintaria documentadas pelo projeto Carpinteiros da Amazônia.
Não à toa venceram o prêmio EDIDA BRASIL 2024 na categoria Projeto Social!