O que viemos fazer aqui?
Desde a pandemia, posso dizer que minha compreensão da vida e do porquê vim parar neste mundo mudou radicalmente.
A parada obrigatória que nos foi imposta, especialmente para mim que tinha acabado de assinar minha rescisão da Casa Vogue após 10 anos intensos e frenéticos à frente da publicação, foi um misto de depressão e choque de realidade. O telefone não tocava.
Eu ocupava meu tempo com o enlouquecedor processo de alfabetização do meu filho, então com seis anos, pelo ensino à distância. E me perguntava: se está difícil para mim, que dirá para a grande maioria dos brasileiros que não tem a minha escolaridade e, menos ainda, o tempo e a condição financeira de se dedicar a isso? A busca por um propósito maior gritava dentro de mim: não dá para estar numa situação de tamanho privilégio e não fazer nada de concreto em benefício ao próximo.
Pensei em partir para uma nova carreira, desta vez no terceiro setor. Mas minha paixão por design, interiores e arquitetura falou mais alto. Também entendi que precisava continuar fazendo o que sabia e amava, para poder ter condições econômicas de ajudar mais ativamente quem realmente precisa.
E parece que um portal energético se abriu. Passei a ser atraída por iniciativas, pessoas, projetos e ideias de cunho educacional, ambiental e social.
Uma delas foi Ester Carro. A designer Claudia Moreira Salles já havia me falado de um projeto com Ester alguns anos antes, mas na época eu não havia compreendido a dimensão do trabalho dessa mulher incrível, nem como eu poderia contribuir com sua missão.
Ester é filha de pai pedreiro e mãe empregada doméstica, nascida na comunidade do Jardim Colombo, área do conglomerado de Paraisópolis, uma das maiores favelas da cidade de São Paulo.
Em seu último ano do ensino médio, Ester obteve bolsa numa escola particular. E no mesmo ano iniciou estágio num projeto de urbanismo da prefeitura em Paraisópolis. Foi aí que se apaixonou pelo lado social da arquitetura, antes mesmo de entrar na faculdade.
Conseguiu bolsa de estudos para Arquitetura e Urbanismo na FMU e trocou seu estágio por uma posição na secretaria de habitação, onde trabalhava no mapeamento urbano voltado para as favelas.
Seu TCC foi sobre habitação social em áreas de risco, pesquisa que foi implementada na prática através do projeto Fazendinhando, que Ester iniciou em 2017, sem verba alguma, movida por um enorme desejo de devolver à sua comunidade o que ela tinha aprendido!
A primeira iniciativa foi a recuperação da antiga fazendinha do Jardim Colombo, que havia se tornado o grande lixão da comunidade. Ester buscou não apenas a requalificação ambiental do local, mas também sua reconexão social, para que os moradores se sentissem pertencentes ao espaço, responsáveis por ele.
Até hoje Ester cuida da programação cultural da Fazendinha, para mantê-la ativa, pulsante, envolvendo a participação dos moradores. “Este é o coração da nossa comunidade. O último festival contou com 700 pessoas, incluindo grande parte da comunidade e muitas crianças”, diz Ester, emocionada.
Em 2017, também iniciou reformas de moradias precárias com sua verba própria. Hoje, estas atividades contam com apoio de patrocinadores e com o reaproveitamento de materiais doados por mostras de decoração como a CASACOR, sua grande parceira.
A situação das moradias nas comunidades é, em muitos casos, demasiada precária e insalubre: casas sem janela, sem banheiro, onde moradores convivem com lixo, baratas e ratos. Como a casa de Neusa, em cujo mutirão de reforma minha assistente, Natacha Pock, e eu participamos.
Visitamos também a nova casa do Tiquinho: o que era um cômodo de 4 m2, sem banheiro, nem cama, ganhou cama suspensa com acesso por uma escada-estante com nichos e gavetas, banheiro completo com chuveiro e geladeira.
Estando lá com Ester, pudemos constatar o poder transformador de sua missão de vida. Seu trabalho não somente resgata a saúde do morador, mas sua dignidade, amor próprio e força interior de lutar pela vida.
Além das reformas, o Fazendinhando também se dedica a projetos com empresas parceiras na capacitação de mulheres desempregadas, com baixa escolaridade, muitas vezes vítimas de violência doméstica e vulneráveis ao tráfico de drogas local.
A primeira capacitação na construção civil contou com 15 mulheres, que receberam aulas teóricas e práticas de assentamento de azulejos. Depois seguiram-se capacitações em pintura, impermeabilização e elétrica.
Mês passado, tive o prazer de contribuir com a mais recente capacitação promovida pelo Fazendinhando. Dessa vez, no módulo de reboco das paredes, onde 20 moradoras do Jardim Colombo aprenderam com Raimundo, pedreiro de obras e morador da região, como fechar buracos nas paredes, passar massa corrida, alisá-la e prepará-la para receber a pintura.
Hoje já são mais de 30 fazendeiras, como são carinhosamente chamadas essas mulheres capacitadas pelo Fazendinhando, cujas vidas transformadas ganharam novos horizontes.
Ao trazer conhecimento técnico para dentro da favela e possibilitar novos caminhos para essas mulheres, Ester promove o resgate de sua confiança, autoestima, autonomia e qualidade de vida. “Além disso, depois de aprenderem juntas, estas mulheres criam um elo comunitário entre elas, percebem o valor do seu trabalho e a importância da ajuda mútua”, completa Ester.
Ester, que acabou de entrar em primeiro lugar no doutorado de urbanismo no Mackenzie e palestrará na próxima Brazilian Conference em Harvard, nos Estados Unidos, diz que a educação transformou sua vida. Eu vou além. Nada do que Ester realizou teria acontecido sem sua garra, sua resiliência e força interior.
Que o Brasil tenha muitas outras Ester a quem possamos apoiar e com quem possamos aprender tanto sobre nossa responsabilidade com o próximo e missão neste planeta.