29.10.2020
Avaliação 
Avalie
 
Sem votos
Avaliar
(Foto: Pedro Andrade)

Efêmera Memória

 minutos de leitura
calendar-blank-line
29.10.2020
Em plena pandemia, tive a notícia que iria apresentar, produzir e codirigir um programa sobre o lado humano da Amazônia. Lembrei de eventos da minha infância que me transportaram para uma realidade até então esquecida.
minutos de leitura

Eu vivo no presente. Pode parecer uma declaração óbvia, no entanto, conheço muita gente que escolhe passar os dias planejando o futuro ou cultivando uma nostalgia atrelada ao passado.

Sem tempo para ler? Que tal OUVIR esse texto? Clique no play.

Sempre tive a memória fraca. Meu irmão, por exemplo, é capaz de dizer a cor da meia que a vizinha estava usando na minha festa de aniversário em 1983, enquanto eu não me recordo nem do nosso endereço naquela época.

O fato é que, apesar de pouco pensar no que já passou, hoje sei que certas memórias ficam ali guardadas em algum lugar no nosso inconsciente. Cabe a nós resgatá-las ou não.

Alguns meses atrás soube que um projeto criado por mim para a TV americana havia sido aprovado. Em plena pandemia, tive a notícia que iria apresentar, produzir e codirigir um programa sobre o lado humano da Amazônia. Logo após assinar o contrato, lembrei de eventos da minha infância que me transportaram para uma realidade até então esquecida. Surpreendentemente, essas recordações me ajudaram a entender o real impacto dessa realização na minha vida.

(Foto: Pedro Andrade)
(Foto: Pedro Andrade)

Me vi dentro do carro da minha mãe, abrindo o porta-luvas e folheando o antigo Guia 4 Rodas. Por incrível que pareça, quando eu era moleque, a gente dirigia sem GPS. Lembro que indagava quanto tempo levaria da nossa garagem até a Amazônia. Me recordei também de aulas de História onde minha professora lia cartas nas quais exploradores portugueses descreviam o primeiro contato com comunidades indígenas no norte do país. Parte do meu fascínio por narrativas bem elaboradas vem da sorte de ter tido bons professores, que por sua vez, me ensinaram a curtir a arte do aprendizado. Esse acesso à boa educação não deveria ser um privilégio, mas sim, um direito.  

Mais tarde, cogitei ser biólogo e dedicar minha carreira ao estudo da fauna brasileira.

Acabei escolhendo outros rumos para minha vida: vim para Nova York, me tornei jornalista, viajei o mundo e agora, finalmente, concretizo a antiga meta de explorar a maior floresta tropical do planeta.

Entendo que minha versão dos fatos possa parecer um tanto quanto poetizada, mas a verdade é que toda essa trajetória emocional explica muito do que senti ao longo dessas seis semanas que passei no Mato Grosso e no Pará.

A Amazônia é feita de superlativos e não oferece respostas fáceis.

Em sua extensão encontram-se 20% da água doce no planeta, mais de 250 etnias, pelo menos 80 idiomas, centenas de comunidades isoladas, milhares de espécies de aves, mais de 40 mil espécies vegetais e isso tudo é só o começo.

Com mais ou menos 5 milhões de quilômetros quadrados, a Floresta Amazônica ocupa 60% do território nacional, o que significa que o Brasil é hoje um dos países que mais preserva áreas nativas no mundo, no entanto, paradoxalmente, é também líder global em retrocessos ambientais.

Cheguei em Manaus - minha primeira parada - disposto a ouvir mais do que falar. Em vez de entrevistar líderes políticos, cientistas e professores, fiz questão de conviver com quem sente isso tudo na pele, os locais.

(Foto: Pedro Andrade)
(Arquivo: Pedro Andrade)

Acompanhei de perto o impacto do coronavírus em comunidades isoladas, a difícil realidade dos ribeirinhos, transformações climáticas assustadoras, o genocídio ambiental causado pelas plantações de soja, o preço do extrativismo desenfreado, o dia a dia de mulheres nascidas na região, a substituição de áreas intocadas por pastos intermináveis (no Pará, por exemplo, estamos falando de 25 cabeças de gado para cada habitante), a luta por iniciativas sustentáveis, a batalha pela sobrevivência de tradições seculares, a generosidade quase ingênua de povos vulneráveis e a ganância sem fim de pessoas dispostas a trocar um dos patrimônios mais valiosos do planeta por grana.

A essa altura do campeonato já sabemos que a Amazônia não é só uma peça fundamental no quebra-cabeça ecológico global, mas também uma verdadeira máquina de fazer dinheiro. Estradas, hidrelétricas, portos, postos de gasolina, fazendas, ouro e muito chão. Se não levarmos em conta as reservas indígenas, espaços já ocupados e terras protegidas, a Amazônia ainda abrange uma área maior que a Alemanha e a França juntas, que basicamente não pertence a ninguém. Este território sem dono é facilmente explorado por grileiros, garimpeiros, seringueiros e outros "eiros"...

Foto: Pedro Andrade
Foto: Pedro Andrade

O fato é que esse lugar não é ocupado só por plantas e bichos, e aqueles que vivem nessa parte do país precisam de opções sustentáveis para continuar subsistindo dessa terra que os alimentou por tanto tempo. Durante meus dias por lá, tive o privilégio de conhecer pessoas dispostas a compartilhar uma sabedoria que não se ensina na escola. Minha realidade é dividida entre meu apartamento, transportes públicos, escritórios, aviões, hotéis, carros, estúdios, ou seja, ambientes controlados com temperatura previsível e conforto constante. Os habitantes dessa região não podem se dar a esse luxo e, exatamente por isso, sentem de perto tudo aquilo que está acontecendo ao nosso redor. Os rios, as chuvas, as estações, os animais, os sons, os cheiros e as cores... tudo mudou na última década.

Quando nasci, somente 1% do que enxergamos como Amazônia havia sido destruído. Agora, esse número subiu para 20%. Cientistas alertam que, caso chegue a 40%, não haverá mais salvação. A floresta tropical se tornará uma grande savana.

Foto: Pedro Andrade
Foto: Pedro Andrade

Povos indígenas que abrigam esse território há séculos e foram capazes de sobreviver a pragas, genocídios e escravidão, talvez não resistam ao estrago causado por nós.

Busquei projetos sustentáveis (dentre eles, iniciativas geniais lideradas por grandes amigos meus como Oskar Metsavaht, Alex Atala, Marcelo Rosenbaum, Nina Braga do Instituto E e outros), vozes fortes, gestos inspiradores e movimentos revolucionários. Saí de lá encantado, confuso, ainda mais orgulhoso de ser brasileiro e com a exata noção de que ainda falta muito aprendizado para que eu consiga entender um pouco desse lugar tão complexo e singular.

Foto: Pedro Andrade
Foto: Pedro Andrade

Para minha sorte, esse foi apenas o início de uma jornada que com certeza mudará minha vida. Ainda gravo pelo menos mais quatro ou cinco episódios antes da estreia em Março de 2021.

Os olhos do mundo estão voltados para a Amazônia e confesso que, de certa forma, enxergo nesse programa algumas oportunidades: primeiro, a de mostrar de forma digna, responsável e verdadeira o que está em questão quando falamos sobre essa parte essencial do ecossistema global. Segundo, o privilégio de sentir na pele e ver de perto as maravilhas que esse lugar tem para oferecer, antes que seja tarde demais. E, por último, tentar contribuir, ainda que modestamente, para que no futuro a maior floresta tropical do planeta não exista somente na nossa efêmera memória.

Foto: Pedro Andrade
Foto: Pedro Andrade
 
 
Compartilhe
Avaliação 
Avalie
 
Sem votos
VOLTAR
ESC PARA FECHAR
Minha avaliação desse conteúdo é
0 de 5
 

Efêmera Memória...

Efêmera Memória

  Sem votos
minutos de leitura
Em análise Seu comentário passará por moderação.
Você avaliou essa matéria com 1 estrela
Você avaliou essa matéria com 2 estrelas
Você avaliou essa matéria com 3 estrelas
Você avaliou essa matéria com 4 estrelas
Você avaliou essa matéria com 5 estrelas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Jornalismo histórico. Pedro nos deixará um registro inigualável para as gerações atuais e futuras! Que profissional consciente e sensível. Um privilégio termos nas lembranças de Pedro uma semente para as memórias da Amazônia.

  2. O texto,sempre bem escrito!!!!!!! Gostei muito da relação com a visão de todo o conforto que temos ao nosso redor ,tudo sob o nosso controle ,com a visão deles , habitantes da Amazônia, que sentem na pele tudo que é alterado na natureza. ❤

  3. Fico muito feliz por ter mais uma pessoa ,como vc, de grande expressão no Brasil e nos EUA, e com programas importantes, como Pedro pelo mundo mais,mostrando a nossa, a de todo o mundo querida e importantíssima Amazônia. Peço a vc Pedro, que mostre o mais que vc puder para que o mundo saiba o qto ela é importante é o qto ela está sendo destruída pela ganância desenfrada dos homens que só querem dinheiro e tbm mostrar que, principalmente, a madeira que sai de lá é comprada por todo o mundo e principalmente pelos países desenvolvidos. Esse é um dos motivos que ela está sendo destruída, porque tem quem compra, então todos estamos destruindo-a...Mostre o mais que vc puder, p mundo precisa saber. Obrigado, o mundo te agradece!!!

  4. Dedicação e empenho resume esse trabalho de Pedro Andrade, que os olhos dos brasileiros em especial vejam a riqueza que tem em suas mãos. Parabéns

  5. Amo tudo que o Pedro faz e tenho certeza que esse trabalho com a Amazônia vai ser maravilhoso estou ansiosa para ver

Pedro Andrade
Colunista
Colunista

Vivendo em Nova York há 21 anos, o jornalista e apresentador carioca, Pedro Andrade,...

Conhecer artigos



Não perca nenhuma novidade!

Assine nossa newsletter para ficar por dentro das novidades de arquitetura e design no Brasil e no mundo.

    O Archtrends Portobello é a mais importante fonte de referências e tendências em arquitetura e design com foco em revestimentos.

    ® 2024- Archtrends Portobello

    Conheça a Política de Privacidade

    Entenda os Termos de Uso

    Veja as Preferências de Cookies