Arquitetura chã, ou a calçada portuguesa
A observação acerca da qualidade do passeio público – “O que eu acho incrível em Portugal é a calçada...” –, que eu ouvi de um editor de uma revista espanhola de arquitetura, me fez prestar ainda mais atenção no passadiço lusitano. Desde o instante em que escutei o comentário – em novembro de 2017 –, por razões profissionais, frequentei a terrinha inúmeras vezes. Como um dos curadores da exposição Infinito Vão – montada na Casa da Arquitectura, em Matosinhos, cidade vizinha ao Porto –, nos últimos nove meses, entre cinco idas e vindas, passei quase 30% dos meus dias em solo luso com esta frase atormentando minha cabeça.
Na fatídica noite de novembro de 2017, enquanto buscávamos uma marisqueira para jantar na zona portuária de Matosinhos, o editor Fernando Marques notou que a qualidade do passeio português não tinha paralelo no mundo, seja na Suíça ou no Japão. As palavras do fundador da revista El Croquis, citadas por mim no texto “Qualidade aos nossos pés” há um ano e meio, ficaram ecoando em minha mente.
Afinal de contas, o editor tinha razão: sem ironizar os superlativos caros aos irmãos da península ibérica, o desenho, a sensibilidade topográfica e o corte no granito fazem das calçadas portuguesas as mais bem desenhadas e executadas do mundo. Neste ponto, é preciso deixar claro que me refiro ao passeio português de uma maneira geral e não somente à calçada portuguesa, que para nós brasileiros é sinônimo de um tipo de calçamento, chamado também de mosaico português ou pedra portuguesa, que herdamos dos nossos colonizadores e que é utilizado, com outro tipo de pedra, por inúmeros arquitetos brasileiros, de modernos aos contemporâneos. Como não lembrar das ondas de Copacabana e dos pisos de Burle Marx?
Se às vezes os colegas lusitanos adotam as pedrinhas pretas e brancas, eles desenham a calçada portuguesa contemporânea com um repertório muito maior, que se esmera no desenho de guias, rebaixos, fontes, bancos etc. Marcelo Ferraz, que dirige o escritório Brasil Arquitetura, observou em abril passado que a calçada de Matosinhos possui guia e contra-guia, num enorme requinte de desenho e execução. “Dá uma inveja danada!”, ele disse. Como foi possível que eles chegassem a esse grau tão sofisticado?
Nesse ano e meio de convivência com o espaço público além-mar, andando muito a pé, uma das hipóteses que mais me convenceu é que a qualidade do passeio português era consequência da Escola do Porto. Levantei essa suspeita observando a semelhança entre os desenhos das calçadas e dos edifícios da corrente arquitetônica local semeada a partir da segunda metade do século 20 mas que floresceu, principalmente, após o 25 de abril. Entre os projetistas atuantes no Porto que deram origem ao movimento arquitetônico estão profissionais como Fernando Távora (1923-2005), tido como o pai da escola. Seus expoentes mais aclamados internacionalmente, ambos agraciados pelo Pritzker, são Álvaro Siza (1933) e Eduardo Souto de Moura (1952). A proximidade entre os três era tamanha que construíram um pequeno prédio de escritório para abrigar os estúdios, onde ainda trabalham Siza e Souto Moura.
Entretanto, pensando no relacionamento entre a Escola do Porto e o passeio público, se o movimento edificou na paisagem local edifícios notáveis que reverberaram no mundo arquitetônico, a exemplo do Museu de Serralves, de Siza, e do Estádio de Braga, de Souto Moura, acredito que seu principal legado é justamente a calçada. Antes que alguém se levante contra tal heresia devo argumentar que é através do passeio público que o movimento arquitetônico conseguiu melhorar a qualidade de vida de grande parte dos cidadãos portugueses e não apenas daqueles que têm a oportunidade de frequentar seus louváveis prédios.
Passei a acreditar mais na minha hipótese após, no mês passado, visitar a raiz da relação entre a Escola do Porto e a calçada portuguesa contemporânea. Refiro-me a Guimarães, cidade distante 54 quilômetros ao norte do Porto. O local é conhecido como berço de Portugal por sediar, no século 10, os eventos políticos e militares que deram origem ao país como nação soberana. Por isso, desde 2001, seu notável centro histórico é Patrimônio Histórico da Humanidade e atrai muitos turistas.
Durante mais uma sequência de eventos que marcaram o programa paralelo da exposição que curei, tive a oportunidade de conhecer a cidade. Foi lá que, em 1980, Fernando Távora – o pai da Escola do Porto – integrou a equipe que criou um Plano Geral de Urbanização. A ação gerou o Gabinete Técnico Local (GLT), que colocou em prática o processo de reabilitação do centro histórico. A arquiteta Alexandra Gesta, auxiliada por Távora, dirigiu o gabinete público de desenho que criou uma metodologia que foi aplicada em sítios semelhantes.
O ponto de encontro da Escola do Porto com a calçada ocorreu no final da década de 1980, quando Távora desenhou um plano de reabilitação urbana de quatro espaços dentro do tecido histórico. Segundo ele escreveu, “o arranjo de cada praça ou largo reveste-se de um caráter próprio de acordo com sua forma, as suas funções, o seu ambiente construído, até a sua época. Assim será ‘barroco’ o caráter da Praça do Município, ‘medieval’ o da Praça de Santiago, ‘renascentista’ o do Largo de João Franco e ‘romântico’ o do Largo da Condessa de Juncal. Caracteres diferentes inseridos num percurso urbano intramuros que garante a sua unidade dentro da sua diversidade”.
É preciso lembrar um detalhe importante: o norte de Portugal é historicamente marcado por construções de granito cujo saber construtivo permaneceu. Mas um desavisado que visita Guimarães dificilmente percebe a qualidade do desenho do piso. Como ponderou Souto Moura, o projeto de Távora parece natural: “A intervenção em Guimarães tem um desenho em que não se percebe o esforço do arquiteto, o esforço do autor. Tudo aquilo parece que está lá há muito tempo. É um domínio total sobre a topografia, a estereotomia e sobre as pedras, tudo atingiu uma grande naturalidade”.
Por outro lado, se alguém chamar a atenção do visitante desavisado para a qualidade do piso, fica muito claro que o chão do centro histórico de Guimarães possui um desenho contemporâneo que ampara toda a memorável massa construída. Ou seja, se o contexto é histórico, o chão é contemporâneo. Nesse sentido, a calçada de Guimarães possibilita outra leitura da definição que o historiador norte-americano George Kubler fez das construções históricas lusitanas: frente à postura realista e pragmática, que ainda reverbera na produção local, ele as classificou de “arquitetura-chã”.
De certa maneira, a lógica de Távora e sua continuidade criada pelo gabinete técnico de Guimarães tornou-se guia para o desenho do espaço público português. Um exemplo disso é o Largo do Toural, um dos espaços mais impressionantes da cidade, cujo piso foi criado no início desta década com desenho da artista plástica Ana Jotta: as pedrinhas portuguesas, que à primeira vista parecem seguir uma forma geométrica abstrata, reproduzem o mapa do núcleo histórico. Num primeiro momento, a lógica de Guimarães foi adotada em outros tecidos históricos; depois, na cidade contemporânea, chegando a centros como Porto e Lisboa. E assim, à moda da Escola do Porto, desenhou-se as novas calçadas de todo o país.
Os passeios de Matosinhos, que precipitaram o comentário que escutei do editor espanhol, foram desenhados por Alcino Soutinho e José Bernardo Távora, filho de Távora. Eles foram criados durante a construção do metrô, com projeto liderado por Souto Moura. Enquanto pisava na calçada de granito a poucas quadras da casa onde Siza cresceu, o editor espanhol não poderia imaginar que o inocente comentário ficaria andando em minha cabeça por tanto tempo.
muito obrigada, seu artigo reforçou meu interesse pelo estudo sobre a importancia da locomoção e mobilidade pelos passeios publicos.