Francis Kéré: entre o tradicional e o contemporâneo
Instituído em 1979 pela Fundação Hyatt, o prêmio Pritzker de Arquitetura é considerado a mais alta distinção do setor em escala mundial. Com o objetivo de homenagear um profissional vivo, cujo trabalho tenha produzido uma contribuição significativa para toda a humanidade, ele tem sido entregue ao longo dos anos a homens e mulheres das mais diversas nacionalidades. Arquitetos que, no entender do júri, tenham demonstrado uma decisiva combinação de talento, visão e compromisso.
Avaliado sob qualquer desses aspectos, o currículo de seu mais recente laureado, o arquiteto Francis Kéré, o primeiro negro a receber a distinção, excede em qualificações. Mas consegue ir além. Nascido em Burkina Faso, um dos países mais pobres do mundo, e radicado em Berlim – onde estudou e hoje mantém seu estúdio –, Kéré tem se notabilizado por empoderar comunidades através da sua arquitetura. O que não é pouco. Ainda mais levando-se em conta seu principal raio de ação: países marginalizados, com infraestrutura, via-de-regra, inexistente.
No sentido literal do termo, sua obra é, por assim dizer, fruto das suas circunstâncias. Mas, ainda que aparentemente frágeis, seus edifícios estão, em sua construção e materiais, sólida e simbolicamente, bem fincados ao chão sobre o qual se assentam. “Ele sabe, por dentro, que a arquitetura não é sobre o objeto, mas sobre o objetivo. Não sobre o produto, mas sobre o processo”, conforme bem pontuou a comissão julgadora do Pritzker.
Como no caso da Escola Primária de Gando. Um de seus primeiros e mais comentados projetos, que exigiu do arquiteto um desempenho extra, ao mesmo tempo em que inaugurou uma nova era em sua carreira. Afinal, era necessário não só oferecer uma solução contemporânea para um edifício sujeito ao calor extremo, mas também contornar as limitações de um orçamento bastante reduzido. Desafios que Kéré soube responder à altura, ao criar oportunidades para a atuação dos cidadãos locais em todos os níveis da construção: das paredes ao mobiliário.
Trabalhando assim, dentro de uma perspectiva simultaneamente local e global, e lançando mão de uma abordagem sensível e respeitosa, ele soube incorporar à arquitetura do edifício conhecimentos e práticas ancestralmente cultivados pela comunidade local. Ao mesmo tempo em que não se privou de adotar soluções arquitetônicas avançadas, tão a seu gosto. Muito além da estética e das boas intenções, trata-se de um projeto que, em última análise, materializa o que muitos almejam, mas poucos realizam: transitar entre o tradicional e o contemporâneo.
Referencial na trajetória do arquiteto, a escola de Gando assinala ainda os primeiros sinais de afirmação do vocabulário arquitetônico próprio, altamente expressivo de Kéré: coberturas duplas, torres eólicas, ênfase na iluminação indireta e soluções sustentáveis. A argila utilizada, por exemplo, foi reforçada pela adição de cimento, dando origem a um tipo de massa bioclimática. Material capaz de reter o ar mais frio no interior do prédio, enquanto permite que o calor escape através do seu telhado. E, dessa forma, produzir ventilação, mas sem a intervenção do ar condicionado.
Impactante não só do ponto de vista estético, mas também social, o sucesso do projeto aumentou o corpo discente da escola de 120 para 700 alunos e motivou a criação de um alojamento para professores, em 2004, e depois uma biblioteca, em 2019. Além de inspirar a construção de outros edifícios educacionais, voltados para a cultura e a saúde, também com propriedades bioclimáticas e sustentáveis, não só em Burkina Faso, mas em outros países da região, como o Quênia e Moçambique.
Ao dar origem a escolas, unidades de saúde e habitação, prédios cívicos e espaços públicos, a expressão simbólica das obras do arquiteto acabou por ultrapassar aos olhos dos críticos seu próprio valor construtivo. “Francis Kéré cria uma arquitetura sustentável para sua região e seus habitantes, em terras de extrema escassez. Ele é igualmente arquiteto e servo, aprimorando as vidas e experiências de cidadãos que vivem em regiões por vezes completamente esquecidas”, sintetizou Tom Pritzker, presidente da Fundação Hyatt.
Transformada em seu marca registrada, a estratégia do arquiteto de integrar ao processo as habilidades locais para elevar a vida cívica das pequenas aldeias motivou não só novos projetos sociais. Mas, também, convites para a realização de edifícios legislativos como a Assembleia Nacional de Benin, em construção, e para a Assembleia Nacional do Burkina Faso, hoje interrompida em função da situação política do país.
Mais do que nunca oportuna, a arquitetura praticada por Francis Kéré nos faz lembrar ainda da urgente mudança de padrões insustentáveis de produção e consumo. Assim como da necessidade de fornecer a infraestrutura adequada para bilhões de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Ele levanta ainda questões fundamentais sobre o significado de permanência das construções em um contexto de mudanças tecnológicas aceleradas e sobre a reutilização de resíduos. Mas isso não é tudo.
Kéré ambiciona, em última análise, virar a chave. Mudar o paradigma. Postura que merecidamente o credencia a ocupar o seu lugar no seleto panteão da arquitetura mundial. “Não é porque você é rico que você deve desperdiçar material. Não é porque você é pobre que você não deva tentar criar qualidade”, conforme ele afirmou certa vez. Para o arquiteto global, em permanente trânsito entre Berlim e Burkina Faso, todos merecem qualidade, conforto e luxo. “Estamos, definitivamente, interligados. As preocupações com o clima, a democracia e a escassez devem ser preocupações globais e comuns a todos nós”, defende ele. Que assim seja.
ótima publicação, muito bem escrita