Quem se depara com uma obra de qualidade logo quer saber como foi o processo criativo, os desafios envolvidos e as lições aprendidas, certo? Esse interesse pelos detalhes é mais que esperado tanto pelo público geral como principalmente por profissionais dos ramos do design e da arquitetura.
Um destaque recente em ambas as áreas é o Projeto Moradias Infantis, desenvolvido pelos escritórios Aleph Zero e Rosenbaum. Avaliado entre 20 propostas e quatro finalistas, o complexo escolar venceu o Prêmio Internacional Riba 2018, reconhecimento mais do que merecido pela relevância da construção.
Realizada a cada dois anos, a premiação conta com a participação de especialistas internacionais e é concedida aos melhores projetos do mundo. O objetivo é valorizar edifícios que ofereçam um impacto social significativo e que representem a excelência em design e ambição arquitetônica. Incrível ver uma equipe brasileira conquistando um prêmio tão importante, não é mesmo?
Quem veio contar um pouco mais sobre a obra vencedora é Gustavo Utrabo, arquiteto e sócio da Aleph Zero. Acompanhe e confira todos os detalhes da nossa conversa!
Localização e início do projeto
Localizada na Fazenda Canuanã, zona rural de Formoso do Araguaia, no Tocantins, a instalação é uma unidade da Fundação Bradesco. Trata-se de um modelo de moradia que se organiza em duas vilas compostas por dormitórios, pátios, varandas e espaços de convívio, como sala de TV e ambiente para leitura.
Gustavo afirma que "o projeto surgiu como um convite do designer Marcelo Rosenbaum em 2015". No primeiro ano, a equipe fez um trabalho de imersão na escola, a fim de estabelecer uma relação com a comunidade e conversar com as famílias, os alunos e professores. Foram 14 dias utilizando uma metodologia de comunicação que Marcelo costuma aplicar ao design.
O processo se concretizou no dia 29 de janeiro de 2017, quando a ocupação aconteceu e o local passou a ter a vida esperada com o desfrute das crianças. "Foi um dia memorável", conta o arquiteto.
Ponto de partida e inspirações
Gustavo prefere não usar a palavra inspiração por se tratar de algo muito fugaz. Como ele mesmo diz, "é o oposto do que é a arquitetura, um objeto construído de longa permanência e de grande impacto humano e material".
Para ele, materializar uma visão crítica de mundo exige a análise de aspectos tangíveis, como escala, função, custos, materiais existentes, entre outros: "O que levamos em conta foram as técnicas construtivas locais, a demanda das crianças e o desafio de construir em um local tão remoto como Canuanã".
Objetivos e mudanças
A proposta era criar um espaço generoso onde as crianças pudessem brincar, estudar, dormir e socializar. Ao mesmo tempo, o lugar deveria protegê-las do forte calor do cerrado. Perguntado sobre o efetivo alcance desse objetivo, Gustavo disse que "inclusive tivemos a feliz notícia de que o desempenho escolar delas melhorou".
O profissional também destaca a importância de tratar esse tipo de trabalho como um processo contínuo, que sofre alterações para apresentar melhorias — aprimoramento de detalhes, escala, proporções e assim por diante. Afirma ainda que é arriscado se apaixonar pela imagem do projeto, já que isso pode fazer com que aspectos importantes fiquem de lado.
Para Gustavo, "projetar é um exercício diário de presença e de atenção para com tudo". Assim fica fácil compreender por que a proposta inicial nunca é idêntica ao resultado! No caso da obra que levou o Prêmio Internacional Riba, por exemplo, a quantidade de alunos mudou ao longo do caminho, fazendo com que o projeto ficasse maior que o esperado.
Escolha dos materiais
Aliando a estética contemporânea com técnicas tradicionais, o edifício foi construído a partir de recursos locais. É possível ver que traz elementos leves e pré-fabricados, como a estrutura de madeira, bem como materiais com maior massa, a exemplo dos tijolos feitos com a terra da fazenda, secos ao sol.
Empregados nas paredes e nas treliças, os blocos se destacam por suas propriedades térmicas, técnicas e estéticas. "Como usamos tijolos com dimensões generosas e criamos uma grande sombra, o projeto ficou com um conforto térmico muito bom, uma ótima resposta ao clima local", diz Gustavo.
Cabe destacar que não há vidro na edificação, permitindo que a ventilação seja constante em todos os ambientes. As coberturas ficam apoiadas em vigas e colunas feitas de madeira laminada e detalhada. Essa é a matéria-prima que predomina na obra, aparecendo também em escadas e passarelas com sacadas.
"A estrutura de madeira foi realizada pela Ita Construtora, uma empresa que admiro muito e que foi essencial para o projeto", completa. Graças aos elementos pré-fabricados, foi possível montar tudo rapidamente, garantindo uma obra mais rápida e com baixo desperdício.
Desafios e aprendizados
Nas palavras de Gustavo, "o maior desafio lógico é conseguir executar uma obra tão distante com o cuidado que achamos importante e que estaria à altura do extraordinário trabalho realizado para a Fundação Bradesco".
Nesse sentido, o projeto não só trouxe a concessão do Prêmio Internacional Riba como também proporcionou aprendizados diversos aos envolvidos. O ensinamento da persistência aliado ao trabalho em grupo foi apontado pelo arquiteto como um dos mais impactantes.
Transformação social
O Projeto Moradias Infantis une técnicas vernaculares em um modelo de habitação sustentável que busca a transformação, o resgate cultural e a valorização de sistemas construtivos locais. Dessa forma, ajuda a criar uma noção de pertencimento que é necessária ao desenvolvimento das crianças. Não é à toa que a obra foi reconhecida por tratar a arquitetura como um instrumento para a transformação social.
Sobre esse assunto, Gustavo afirma que, de fato, a arquitetura é uma importante ferramenta e deve ser "utilizada como algo amplo, inclusivo e com uma visão em longo prazo". Para ele, há várias formas de fazer isso, principalmente se considerarmos a extraordinária diversidade presente no país. "Fazer cidade é um projeto democrático inclusivo e infinito. Os modos mudam, a obra fica", completa.
Lições e recompensas
Gustavo pretende levar aspectos positivos desse projeto para seus próximos trabalhos: "O que me move são alguns interesses filosóficos, como o entendimento das relações entre natureza e cultura, da sombra como espaço a ser ocupado, o construir como conhecimento e, logicamente, as pessoas". A conquista do Prêmio Internacional Riba mostra que o interesse pelas questões citadas pode trazer ótimos resultados.
Perguntado sobre a possibilidade de continuar com projetos semelhantes, o arquiteto afirma que sim. Ao mesmo tempo, ambos os sócios da Aleph Zero estão fortalecendo suas pesquisas e seus interesses individuais. "Os prêmios validam o trabalho. A recompensa é a possibilidade de realizar os próximos de forma independente", finaliza.
Missão da Aleph Zero
Gustavo Utrabo e Pedro Duschenes são os nomes por trás do escritório fundado em Curitiba. A equipe atende clientes do setor público e privado, atuando em áreas que incluem exposições, desenho de mobiliário, arquitetura residencial e comercial, bem como projetos de escala urbana.
A missão da Aleph Zero é construir uma visão crítica sobre o mundo por meio da arquitetura como campo ampliado do conhecimento. Seus trabalhos são desenvolvidos com a colaboração de artistas, filósofos e consultores especializados, de modo a buscar uma atmosfera singular para cada projeto.
Em texto fornecido pela equipe, Aleph Zero representa "a diferenciação do infinito, do indefinido, a possibilidade de tornar comparável aquilo que é imensurável, de conformar o vazio, potencial para os acontecimentos". É possível ver mais sobre a origem do nome no próprio site do escritório.
Gostou de conhecer os processos que levaram à construção de uma obra tão relevante e adequada a quem faz uso de seus espaços? A conquista do Prêmio Internacional Riba 2018 não só mostra que a arquitetura brasileira tem muito a oferecer como também inspira outros profissionais a buscarem o devido reconhecimento.
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