O que o Pavilhão da Serpentine representa para a arquitetura contemporânea?
O surgimento do pavilhão no gramado da Galeria Serpentine é um sinal de que o verão em Londres chegou.
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Há 20 anos a galeria Serpentine UK convida uma arquiteta ou um arquiteto que ainda não teve um projeto construído em Londres, para criar o pavilhão que já é marca registrada na paisagem londrina durante o verão.
O amplo gramado ao lado do Lago Serpentine é um papel em branco para os arquitetos criarem seu manifesto arquitetônico em forma de pavilhão.
Nomes como o de Zaha Hadid (2000), Oscar Niemeyer (2003) e Rem Koolhaas (2006) já estiveram em sua programação, respectivamente. Para destacar o quão notável é ser comissionado pela galeria, até 2015, 2/3 dos arquitetos que projetaram o pavilhão da Serpentine ganharam o Pritzker - a premiação conhecida como “o Nobel da arquitetura”.
Oscar Niemeyer foi o primeiro ganhador do Pritzker a ser comissionado pela Galeria e o único brasileiro dentro da programação.
O pavilhão é responsável por trazer uma reflexão inovadora para a cultura arquitetônica e por isso é tão aguardado pela comunidade de arquitetos.
O projeto é desenvolvido durante seis meses, o que torna o processo todo mais intenso. Apesar do programa arquitetônico ser simples por se tratar basicamente de um espaço que promova o convívio da comunidade londrina, ele também é complexo, por carregar uma enorme subjetividade envolvida neste processo todo.
Aqui eu chamo de “subjetividade” a ausência das mulheres ao longo da existência deste programa.
Em 20 anos de programação, a arquiteta Sumaya Valley (África do Sul) escolhida para projetar o Pavilhão da Serpentine 2020 (adiado para 2021 por conta da pandemia) é a terceira mulher convidada, sendo antecedida somente por Zaha Hadid (Iraque) e Frida Escobedo (México). É importante ressaltar a ausência de mulheres em grandes eventos e premiações de arquitetura, pois o não-reconhecimento das produções destas é uma lacuna a ser preenchida, que temos, a todo custo, tentar preencher.
Essa crítica, além de construir minha pesquisa-ativista, me fez criar o Projeto Arquitetas Negras em 2018, que hoje tem mapeadas 625 arquitetas negras em todo o Brasil. As arquitetas negras brasileiras também sofrem com o não-reconhecimento de suas produções.
Por isso, a partir deste mapeamento, tenho criado ações que geram reflexão acerca das desigualdades existentes no exercício da profissão de arquitetura. Desigualdades estas que partem de questões de raça, classe e gênero.
Por este motivo, destaco o pavilhão 2020 projetado pelo escritório Counterspace - liderado por Sumaya, como um rompimento das barreiras coloniais e sexistas que escondem uma expressiva contribuição teórica, crítica e prática para o campo da arquitetura.
Counterspace - Joanesburgo, África do Sul
CounterSpace é um escritório interdisciplinar de arquitetura, localizado em Joanesburgo, África do Sul. Liderado pela arquiteta Sumaya Valley - que eu tive a alegria de tomar conhecimento a partir de uma participação que fizemos em 2020 como juradas da disciplina do mestrado de arquitetura da Universidade Columbia, Nova York, a convite da professora arquiteta Amina Blackshear - que eu falarei sobre o trabalho em outros textos.
O projeto é inspirado nas comunidades da periferia de Londres, que é majoritariamente ocupada por estrangeiros. O conceito é construído tendo como base a sobreposição de diferentes lugares de importância significativa para essas comunidades, que a partir de um jogo de adição e subtração de formas, geram uma nova forma arquitetônica convidativa à celebração da diversidade da periferia de Londres.
Sumaya descreve seu projeto assim:
O próprio pavilhão é concebido como um evento - nele a reunião de uma variedade de formas de toda a cidade de Londres serão apresentadas durante toda sua permanência. Essas formas são impressões de alguns lugares, espaços e artefatos que contribuíram para construção de parte da identidade de Londres.
As quebras, gradientes e distinções de cor e textura entre as diferentes partes do Pavilhão tornam essa reconstrução legível à primeira vista. Como um objeto, experimentado por meio do movimento, o pavilhão tem continuidade e consistência, mas a diferença e a variação estão embutidas no gesto essencial entendido a cada passo. ”
Como a própria Sumaya descreve, a forma é concebida a partir da releitura de recortes sobrepostos de imagem de lugares significativos para as comunidades periféricas de Londres. Os materiais construtivos escolhidos também contribuem para a validação do conceito, que diz sobre a junção, a aglomeração, o hibridismo. O tijolo reciclado, é o resultado da mistura de resíduos de construção. Já a cortiça, é escolhida por ser extraída somente da casca do Sobreiro e desta forma evita que o mesmo seja derrubado, contribuindo para a sustentabilidade da obra.
Muito temos a aprender com a experiência de escritórios de arquitetura no sul da África e até mesmo aqui, com nossos vizinhos da América do Sul.
Pois como diz Sumaya:
Não há território neutro. Todos os territórios estão vinculados.
A experiência de uma arquiteta na África do Sul possui mais vínculos com a experiência das arquitetas negras da América do Sul do que podemos imaginar. Contextos sociais, econômicos e outros tantos reafirmam a ligação África-Brasil que, ainda bem, nunca será perdida.
Sobre estes vínculos, também falarei em outro texto.
Por ora, celebro o fato de termos mulheres do sul global ocupando espaços de prestígio no campo da arquitetura.