No último dia 31 de julho foi celebrado o Dia Nacional da Mulher Arquiteta e Urbanista. Instituído em 2020, durante a 11ª Reunião Plenária Extraordinária do CAU/BR - Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, a data representa um passo importante de compromisso do conselho na promoção à igualdade de gênero.
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Embora mulheres tenham mais tempo de ensino formal, sejam maioria entre pessoas com ensino superior e representem a maior parcela de profissionais atuantes na arquitetura, o acesso ao título não é suficiente para superar as desigualdades nos rendimentos e na precariedade das relações de trabalho.
O 1º diagnóstico ‘Gênero na Arquitetura e Urbanismo’, realizado pela Comissão Temporária para a Equidade de Gênero do CAU, entre julho de 2019 e fevereiro de 2020, além de identificar e mensurar os obstáculos encontrados por profissionais ao longo da carreira, amplia o debate sobre gênero na esfera da construção civil. A pesquisa foi realizada pela plataforma Typeform e consultou um total de 1268 pessoas, sendo 975 arquitetos e urbanistas (767 mulheres e 208 homens) e 293 homens e mulheres de outras profissões.
Para o Conselho, “considera-se que as inequidades apontadas devam ser entendidas como as lacunas mais urgentes a serem mitigadas. [...]. “ Um ranking de disparidades de gênero: assédio, maternidade, violência sexual, disparidade salarial, falta de apoio masculino e ausência paterna na criação dos filhos.
- ASSÉDIO
As mulheres são as vítimas mais frequentes de violência sexual, assédio moral, sexual e discriminação de gênero. Na intersecção racial, mulheres negras são vítimas de assédio 16 vezes mais do que homens brancos.
- MATERNIDADE
O percentual de mulheres que declararam ter muita dificuldade de trabalhar por conta dos filhos é 15 vezes maior do que o de homens. A divisão desigual do cuidado com os filhos sobrecarrega as mulheres, pressionando-as a escolherem entre carreira e maternidade, enquanto a paternidade pouco afeta o exercício profissional dos homens.
- VIOLÊNCIA SEXUAL
Arquitetas e urbanistas são frequentemente expostas a violência sexual, o número delas que declarou ter sofrido esse tipo de violência com uma frequência média trimestral foi 14 vezes maior que o de homens.
- FALTA DE APOIO
Boa parte dos homens ainda é contrária a qualquer tipo de ação do CAU para promover equidade de gênero, tanto no âmbito da profissão, quanto das cidades, o que reforça a importância da conscientização masculina na esfera global.
- DISPARIDADE SALARIAL
Embora muito qualificadas, arquitetas e urbanistas ainda têm salários ou rendimentos inferiores aos profissionais homens com a mesma formação. Se analisarmos a faixa de profissionais com renda acima de 13 salários mínimos, por exemplo, há 13 vezes mais homens brancos do que mulheres negras.
“Se somos maioria entre profissionais atuantes, porque continuamos sub representadas em premiações, cargos públicos ou chefiando grandes escritórios?”
Convivemos com o assédio, o medo frequente da violência, a pressão social e a dificuldade em equilibrar vida pessoal e profissional, a falta de reconhecimento financeiro e o pouco apoio às nossas demandas.
Flávia Biroli, cientista política, professora titular do Instituto de Ciência Política da UnB e autora de ‘Divisão sexual do trabalho, gênero e democracia’², elucida como a falta de acesso das mulheres à expressão pública de suas necessidades e interesses - sobretudo nos espaços em que possam se desdobrar em agenda - nos impede de avançar.
A divisão sexual do trabalho não é uma escolha voluntária e individual, ela é estrutural: estimulada por instituições e políticas públicas (ou pela ausência delas), reforçada pela responsabilização desigual de homens e mulheres pelo trabalho doméstico, ao apresentar as atividades como sendo aptidões naturais.
De um lado, as relações de trabalho organizam a dualidade feminino x masculino, do outro, posicionam mulheres de maneira desigual segundo sua raça e classe social. O privilégio para alguns no acesso ao tempo livre, remuneração adequada, rede de contato e no reconhecimento de suas competências e habilidades impacta diretamente na atuação em espaços da política institucional e na participação no debate público.
Se comparado às mulheres - com essa série de privilégios - os homens têm mais possibilidades e tempo de dedicar-se à carreira, participar de concursos de arquitetura, desenvolver suas empresas, produzir academicamente e/ou engajar-se na política.
Ainda assim, as MULHERES ATUAM e pagam o preço alto do julgamento e da pressão social: “com quem está a criança?”, “mas você não sente saudade?”, “o seu marido não acha ruim?”, que implicam em maiores dificuldades em manter relacionamentos e uma vida equilibrada dentro e fora de casa.
Além da cobrança pela dedicação à vida doméstica familiar, somam-se novas atividades e competências, as mulheres ampliaram sua atuação pública sem abandonar as responsabilidades tidas, historicamente, como sendo femininas e maternas.
Não por acaso, estão todas adoecendo!
Para homens, a carga de trabalho desigual não é um problema e, para mulheres que podem terceirizar a manutenção da casa e o cuidado com os filhos, esse pode não ser um obstáculo ao avanço na carreira. Dessa maneira, quem tem maior capacidade de ocupar espaços e promover mudanças tende a não priorizar essas demandas.
Quem sente mais? As mulheres mais pobres, as mulheres negras, as mães-solo.
Como avançar?
Não podemos subestimar o poder das redes de contato, são elas que viabilizam a arquitetura. Por mais competente que uma arquiteta seja, são as pessoas que indicam, contratam, constroem: sem contatos nenhuma carreira deslancha. Os homens se articulam dessa maneira desde sempre, é fundamental construirmos redes de contato femininas.
Já contamos por aqui como foi importante o contato com outras profissionais negras que, além de abrirem as portas para várias oportunidades, nos impulsionam diariamente com a troca de experiências. É fundamental que estejamos atentos às demandas femininas de maneira ampla, para que nossa movimentação não seja apenas individual mas coletiva e, de fato, promova mudanças estruturais.
Se portais de arquitetura e premiações não visibilizam mulheres, precisamos cobrar esse posicionamento. Se já existem portais que o fazem, apoiemos os canais que reforçam esse compromisso.
Se os escritórios têm equipes femininas mas não dão crédito a elas em seus projetos, por quê usá-los como referência de sucesso? Saiba quem está por trás das marcas com as quais você trabalha e quem participa das ações promovidas por ela. Priorize empresas que têm a diversidade como compromisso real: uma equipe composta 100% por pessoas brancas não é normal.
Durante muito tempo, a nossa única possibilidade foi o esforço para ocupar os espaços existentes, pensados para os homens. É a hora de nos dedicarmos a construir novas trajetórias e possibilidades, o caminho que queremos trilhar. Chega de perpetuar a ideia de que o modelo de sucesso é um grande escritório chefiado por um ou dois nomes de destaque, onde os bastidores escondem uma rotina de trabalho extenuante, exploradora e hierárquica.
A arquitetura é sobre pessoas, tem que ser plural e acolhedora!
²Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. Flávia Biroli (São Paulo, Boitempo, 2018)