Minha experiência com Lina
Dona de uma cabeça explosiva que oscilava entre a depressão, o profundo desencanto com a humanidade – ao repetir em francês a frase atribuída a Marx, "É pelo pior que a história avança” –, e o entusiasmo e otimismo na criação de um pequeno ou grande projeto. Essa era nossa Lina Bo Bardi.
O caminhar constante por esses extremos, fez sua obra simples e complexa. Simples, ao despertar paixões ou choques logo ao primeiro contato, fosse em sua arquitetura, textos ou depoimentos. Complexa, pela sucessão de descobertas a cada vez que nos aprofundamos nela, num sem fim de possibilidades de novas conexões. De um lado, o rigor extremo; de outro, a busca de liberdade, características que em Lina formavam uma unidade indissociável.
Nas discussões acaloradas, Lina não poupava afirmações categóricas, quase bravatas, muitas vezes absurdas, que, no dia seguinte, se desfaziam em seus projetos ou nas negações do tipo “nunca disse isso”. Não era fácil conviver com um espírito tão pulsante, que nunca dava tréguas ao intelecto, fosse nas discussões de trabalho, fosse nos assuntos corriqueiros do dia a dia.
Esse espírito indomável de uma pessoa que repetia sempre que “nunca pediu para nascer” e que “aos três anos de idade teve a completa compreensão do mundo e da vida” nos “fustigou” intensamente por quinze anos de convívio. Digo “nós” porque divido essa experiência com André Vainer e Marcelo Suzuki, colegas e amigos nessa rica travessia.
Sem tréguas! Sem afrouxar os cintos! Sem preguiça! Sem soluções imediatas e fáceis! Para nós, essa postura de Lina é a prova da mais genuína generosidade e dedicação, algo incomum em relações de trabalho dessa natureza em escritórios de arquitetura.
A contradição fazia parte da gramática de Lina, que embaralhava tudo dificultando a compreensão do que se passava. Quem projeta e cria sabe da importância do questionamento, do exercício da dúvida na construção de uma obra. Em um vai e vem constante, com retrocessos e mudanças de rumo, íamos muitas vezes no embalo de uma embarcação à deriva que, a um toque no timão, se aprumava. Assim era trabalhar com Lina: correr riscos, ser livre diante do que a vida nos apresenta, diante das decisões e escolhas, com rigor e clareza de que se quer o melhor, o mais bem-feito e útil para o outro, sejam indivíduos ou comunidades.
Estão aí o Solar do Unhão, o Masp, o Sesc Pompeia – três obras de grande inserção sociocultural – para comprovar o que digo aqui. São espaços de dignidade, convívio e respeito por excelência.
A base sólida dessa relação foi a amizade que construímos com respeito de lado a lado, e Lina, sempre nos colocando em posição de igualdade, com generosidade e ousadia, tanto diante das decisões de projeto, quanto na partilha dos honorários profissionais. Uma coragem que muitas vezes assustava tal a sua “irresponsabilidade” ao confiar tanta responsabilidade a um grupo de jovens arquitetos recém-formados e inexperientes. Mas essa foi, podemos afirmar com a distância do tempo, nossa formação profissional substantiva.
Brigávamos muito, ou melhor, Lina brigava conosco. E gostava de afirmar que “só vale a pena brigar com quem interessa; brigar por ideias”, como forma de reforçar respeito e amizade. Em meio às discussões acaloradas, não faltava a demonstração de carinho e doçura (sim, doçura), nos presentes que compartilhava, nos pequenos bilhetes com desenhos que nos enviava, nas comidas dos almoços de fim de semana ou na pipoca com quentão dos dias juninos, que nunca faltava todos os anos. Era a satisfação plena do convívio, momentos de grande carinho.
Se me perguntam hoje “quem era Lina e se de fato existiu?”, - como as perguntas fantásticas de Riobaldo Tatarana, cheias de verdade e sonho -, minha resposta de mineiro seria: “sei não”! Mas se for para dizer quem foi Lina, terei que roubar aqui uma frase de Agostinho da Silva, que muito bem a definiria: "Não sou do ortodoxo nem do heterodoxo; cada um deles só exprime metade da vida. Sou do paradoxo que a contém no total".
*Este é o segundo artigo que escrevo com o mesmo título. O primeiro foi publicado na Revista AU em fevereiro de 1992, um mês antes da morte de Lina.
[…] de ter nascido em Roma e iniciado seu contato com a profissão na Europa, foi por aqui que a arquiteta deixou o seu legado. Seu maior projeto foi o do Museu de Arte de São Paulo, conhecido como […]