Legado imortal
Todos nós sabemos que vamos morrer.
Mas também sabemos que não nascemos para morrer.
Nascemos para continuar.
- Paulo Mendes da Rocha
Paulo Mendes da Rocha (1928-2021) não foi apenas um grande arquiteto. Com notável habilidade muito além da prancheta, foi um ilustre pensador, um poeta.
Quantas vezes, em seu escritório, eu lhe fiz uma pergunta, e ele, para responder, contava alguma história curiosa e seu pensamento ia longe… Muitas vezes eu achava que ele acabaria por não responder o que eu lhe havia perguntado. Mas não. Com raciocínio afiadíssimo, ele retornava ao tema com seu rico repertório e concluía brilhantemente sua resposta.
A cidade, o entorno, os habitantes sempre foram as premissas fundamentais de seus projetos: arquitetura como satisfação do desejo humano, explorando ao máximo a engenharia e a resistência dos materiais. “O objetivo da arquitetura é exibir o êxito da técnica. O desejo entra como ideia, digamos, de beleza suprema na realização daquilo entretanto que se queria por necessidade”, assim Paulo definia o mote de sua profissão.
No documentário Tudo é Projeto, de 2017, co-dirigido pela cineasta Joana Mendes da Rocha, filha caçula do primeiro casamento, Paulo, super à vontade em frente à câmera, mostra sua face de homem comum, relatando diversas de suas vivências, incrementadas com inúmeros detalhes, graças a sua invejável memória.
O filme se inicia com Joana e Paulo no escritório em que o arquiteto capixaba ocupou por mais de quatro décadas, até sua morte em 23 de maio de 2021. Com suas amplas janelas, localizado na rua Bento de Freitas, em São Paulo — no mesmo edifício da sede do IAB - Instituto dos Arquitetos do Brasil — o endereço é o santuário dos desenhos, projetos, maquetes, livros, fotos, souvenirs e prêmios recebidos pelo mestre, organizados de forma casual em longas estantes e grandes gaveteiros.
Joana abre a conversa chamando-o de pai. Com grande senso de humor, ele imediatamente corta a intimidade e pede que ela o chame de você.
Aí iniciam um delicioso bate-papo. A cada pergunta de Joana, uma viagem no tempo. Ela dava a corda e ele ia longe, livre e empolgado, floreando cada resposta com sua peculiar erudição.
“Já imaginou a solidão do homem do neolítico? (…) Nós fizemos a cidade, sabe pra quê? Para (podermos) conversar”, poetisa.
E conta sobre sua obra na Praça do Patriarca, pórtico de estrutura metálica com 40 metros de extensão e 20 metros de largura, concluído em 2002 para dar abrigo aos pedestres e contrastar com a arquitetura do entorno, do início do século 20.
“O que o povão achou?”, pergunta Joana. “Eu não tenho coragem de perguntar, de repente o cara fala, ‘eu acho uma porcaria’. Vou ficar decepcionado”, confessou o mestre.
Participa do filme Lito, o filho mais velho de Paulo, também cineasta.
Depois de casado, Lito voltou a morar na Casa Butantã, obra que Paulo projetou em 1964 para sua família. A casa, onde Lito, Joana e os irmãos do meio passaram toda a infância e juventude, marca a grande revolução do conceito de morar defendida pelo pai: um ambiente todo de concreto armado aparente, cercado por amplas janelas, ditado pela continuidade espacial, integrando as zonas sociais e íntimas.
“O melhor lugar para morar é aqui. É difícil ter privacidade, mas ao mesmo tempo isso acaba propiciando a vida em grupo. É uma coisa meio oca indígena. (…) O pai e a mãe fazendo jantar com os amigos, você escuta o burburinho, barulho da cozinha, do banheiro. É essa a lembrança que eu tenho. E é isso que me trouxe de volta para cá. Porque isso foi muito bom”, declara Lito no filme.
Joana e Paulo também falam sobre sua intervenção arquitetônica na Pinacoteca de São Paulo, executada em 1998, sobre o projeto do Museu dos Coches em Lisboa, Portugal, inaugurado em 2015, e sobre o Cais das Artes, em Vitória, sua cidade natal, cuja projeto de 2010 ainda está inacabado.
Sobre a atuação de Paulo no design de mobiliário, no filme ele lembra como foi a criação da premiada cadeira Paulistano, em 1956.
“Nada mais a mesma coisa que o diabo da cadeira, não é? Eu fiz a Paulistano na maior indigência.” Paulo inicia assim seu raconto, dizendo que a ideia nasceu de uma conversa de bar com um amigo engenheiro que então trabalhava na Villares. Pois Paulo foi até a fábrica na garupa da moto de outro amigo pegar algumas barras de aço mola para trabalhar no protótipo que, no seu imaginário, deveria unir a tecnologia de ponta do aço dobrável a frio e a rede ancestral dos indígenas como assento. Enquanto a estrutura imaginada deu certo, a rede foi substituída por lona e couro.
O documentário relembra, ainda, emocionantes momentos, como o Prêmio Pritzker recebido em 2006, e o Leão de Ouro da Bienal de Arquitetura de Veneza, outorgado a Paulo pelo conjunto da obra em 2016.
Quem está em Milão acompanhando o Salão Internacional do Móvel e seus eventos paralelos, de 6 a 12 de junho, poderá assistir a íntegra do filme, que será exibido na Triennale di Milano, no dia 7, às 18h30, com a presença do presidente da instituição, Stefano Boeri, da filha mais nova de Paulo, a arquiteta Nadezhda Mendes da Rocha, e do professor Paolo Galdolfi, que farão ainda um talk, com a minha mediação. Esta iniciativa em Milão tem o apoio da Portobello.