Há muitas Nova Yorks.
Dentre as descrições mais comuns estão: referência gastronômica, reduto de imigrantes, Meca do teatro, epicentro da arte, berço da mixologia e hub progressista. Isso é apenas o começo, no entanto, ao meu ver, a melhor versão desse lugar é a menos celebrada.
Quando a cidade mais popular do planeta se torna sua casa, os encantos mudam. O porteiro varrendo a calçada, pais levando os filhos à escola, o jogo de futebol na casa do vizinho, o latido do labrador mais simpático do bairro, o cheiro da sua padaria favorita e o colorido das flores na primavera.
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Nova York é superlativa, mas é também um local capaz de normalizar situações absolutamente singulares. Aqui, músicos que lotam arenas em Tóquio cantam no boteco da sua esquina. Chefs celebrados em Paris experimentam novas receitas na sua mesa. Artistas cujas obras ocupam lugar privilegiado no Tate, no Smithsonian e no Palais de Tokyo, criam obras novas sentados na sua praça predileta.
A paixão pelo corriqueiro é frequentemente ignorada, mas não deveria ser.
Talvez por passar metade da minha vida fora de casa, aprendi a dar valor aos aspectos mais simples do meu dia a dia.
Nesse exato momento duas das instituições de arte mais respeitadas dos Estado Unidos exibem retrospectivas de dois dos artistas americanos mais festejados de todos os tempos. Ambos tão encantados pelo minimalismo daquilo que é corriqueiro quanto eu.
O Whitney Museum, alguns meses, atrás abriu suas portas para uma exposição dedicada à genialidade sutil de Edward Hopper.
Nascido no fim do século 18 em Nayack, a duas horas de Manhattan, Hopper sempre gostou de pintar. Seus pais, imigrantes holandeses, insistiram para que se dedicasse à medicina, mas, aos dezoito anos, ele se mudou para um quarto e sala no Brooklyn e começou a estudar artes plásticas.
Apesar de viver numa época absolutamente transformadora para a cidade, Hopper sempre retratou o aspecto quieto, solitário, nostálgico e silenciosamente mágico da selva de pedra. Mesmo presenciando a grande depressão, a Segunda Guerra Mundial, o surgimento do Empire States, a construção do Chrysler Building, a febre das lojas de departamento, a explosão do turismo, o badalo do Chelsea Hotel, a ostentação da família Rockefeller e o glamour incontestável das grandes casas de show, seu olhar estava sempre focado em apartamentos vazios, refeições solitárias, arquitetura discreta, restaurantes nada movimentados, sofás aconchegantes e pessoas em momento de introspecção.
Quando se mudou para o Washington Square Park, conheceu e acabou se casando com uma pintora chamada Josephine. A mostra, intitulada Hopper's New York, gira em torno do ser humano por trás do ícone. Além de seus quadros, a gente também tem acesso a fotografias pessoais, cartas de amor, objetos que ele colecionava e esboços feitos ao longo de sua vida. Acima de tudo, o que fica claro é que o artista acreditava que não é necessário ir até os Alpes Suíços, aos templos de Bagam ou aos parques nacionais da Costa Oeste americana para encontrar beleza. Com curiosidade e inspiração, a gente acha poesia e exuberância por toda parte.
Enquanto isso, alguns quarteirões ao norte de Manhattan, uma outra catedral das artes exibe mais de 150 obras de Alex Katz. Aos 95 anos, o judeu nascido no Brooklyn, filho de refugiados russos, continua ativo e faminto por novos horizontes. Ao subir os corredores em espiral do Guggenheim, fica fácil acompanhar as muitas fases do gênio ao longo de oito décadas.
Apesar de estarmos falando de estilos de arte distintos, tanto Katz quanto Hopper priorizaram uma Nova York conhecida apenas por quem já teve coragem de, conscientemente ou não, criar um cotidiano para si na Big Apple. A diferença é que Katz sempre gostou mais de gente que Hopper. Em seus quadros, famílias comemoram eventos importantes, mulheres correm para o metrô, crianças jogam bola, jovens se reúnem e Ada, sua mulher até hoje, marca presença em quase todas as suas fases.
Há muito em comum naquilo que desde cedo fascinou os dois artistas, mas talvez a característica mais relevante nessa conexão seja a resiliência de ambos. A primeira metade do século 20 ficou marcada como um período de valorização de estilos como o cubismo, o abstrato, o dadaísmo e outras "modalidades" não figurativas, ainda assim, esses dois pintores se recusaram a seguir modismos. Nas décadas de 1970 e 1980, a arte pop tomou conta dos Estados Unidos com nomes como Warhol, Haring, Basquiat e Mapplethorpe no topo da pirâmide. Mais uma vez, Katz e Hopper não negociaram a própria identidade.
Assim como Nova York, eles provam que dentro e fora do universo da arte, é possível - e às vezes necessário - celebrar todas as nossas versões sem abrir mão da nossa essência.