O design não existe apenas para criar produtos necessários ao homem. Algumas vezes a tarefa do designer é especular: imaginar situações futuras, impossíveis, insólitas, e investigar formas de resolvê-las, sejam elas factíveis ou imaginárias. Ao que tudo indica, essa vocação especulativa terá cada vez mais lugar no campo, por sua capacidade de ampliar o horizonte do possível e do desejável. É notável o quanto exposições de design contemporâneo têm resultado de uma posição propositiva do curador, no lugar da mera escolha de produtos existentes.
É o que faz Kenya Hara em Architecture for Dogs, mostra em cartaz até abril na Japan House São Paulo. O designer e diretor criativo japonês solicitou a arquitetos, designers e artistas projetos destinados a clientes pouquíssimos convencionais, os cães. A provocação, além de deliciosamente metafórica – afinal, por si só os processos de domesticação já aproximam cachorros do homem mais do que qualquer outro animal –, tem como objetivo deslocar a arquitetura de seu lugar-comum. “Em retrospecto, isso poderia ter sido feito de outras formas, ser ‘Architecture for something’ (arquitetura para algo). Quis que as pessoas percebessem a arquitetura com o frescor de um novo ângulo”, declarou ele.
Bons projetos de design em geral emergem de observações agudas do mundo. É preciso perceber e formular bem o problema. No caso de Hara, instigou-lhe o fato de que cachorros e humanos não compartilham a mesma altura do olhar (o tipo de constatação que deixa de ser banal no momento em que alguém finalmente a faz!). Vivendo em ambientes projetados nas medidas de seus donos, cães são forçados a sempre olhar para o alto e a “aceitar a escala humana”, principalmente na hora de interagir com o melhor amigo. Pela sanidade do pescoço dos bichos, então, o próprio curador apresenta na exposição diversas formulações de escadas (túneis em formato de concha, banquetas, estantes), com o objetivo comum de elevar o cão a cerca de um metro de altura, fazendo-o sentar, por exemplo, à mesa. “Só de imaginar a cena sinto certa alegria”, escreve ele no texto de apresentação dos modelos em tamanho real e de várias maquetes, expostas no terceiro andar do prédio.
A outra parte da mostra, no térreo, contempla projetos que vêm sendo incorporados ao Architecture for Dogs desde 2012, quando a ideia foi lançada. Entre os autores estão cinco dos maiores nomes da arquitetura japonesa contemporânea, Toyo Ito, Kazuyo Sejima, Shigeru Ban, Kengo Kuma e Sou Fujimoto, e a participação inédita de um escritório brasileiro, o FGMF. Cada participante elegeu uma raça de cachorro (esse universo de tamanhos, aspectos e comportamentos tão distintos) e desenhou a partir de suas particularidades. Alguns projetos vão por caminhos absolutamente conceituais, quase absurdos, caso da coleira em formato de roupa leve e flutuante, de Reiser + Umemoto para os Chihuahua, ou o camarim que Konstantin Grcic desenhou para o Toy Poodle, raça que, estudos apontam, é uma das mais inteligentes e, para os fãs, talvez a única capaz de reconhecer a própria imagem.
Outros criaram versões semelhantes a projetos desenvolvidos anteriormente, ajustando, claro, sua escala. Shigeru Ban, por exemplo, usa tubos de papel para formular um playground para a raça Papillon (com o mesmo tipo de material, o arquiteto fez abrigos de emergência para refugiados no Quênia). Nesse caso, os rolos são provenientes de papel alumínio ou filme plástico, o que atende a uma das exigências do Architecture for Dogs: o site do projeto disponibiliza todos os projetos Do It Yoursef para serem replicados em casa. Sou Fujimoto também optou por expor a linguagem reconhecível de sua arquitetura na casinha do Boston Terrier, que remete ao Pavilhão da Serpentine (2013) e à Casa NA (2012), em Tóquio. Segundo o autor, ao servir também como estante de objetos, o espaço promove interação entre cão e dono. O caminho multifuncional foi igualmente escolhido pelo FGMF, que criou para o Yorkshire um nicho de feltro suspenso por tirantes presos à estrutura de uma mesa de centro.
Os adjetivos inclusivo e acessível, que estão – felizmente – na crista da onda do design, ganham destaque no conceito bolado por Kenya Hara. Pois, ao considerar os hábitos, preferências e limitações de cada raça, os projetos conferem dignidade aos cães; não importa se o benefício é sentido por eles ou apenas pelos donos. É o exercício de olhar para aqueles que estão excluídos do tipo comum a quem produtos e serviços em geral se destinam – pessoas com dificuldades motoras, deficientes físicos, analfabetos, pessoas em situações pós-trauma etc. A meu ver, nessa alegoria reside a melhor descoberta de Architecture for Dogs.