Era 15 de março de 2022, há quase um mês, quando o resultado do Pritzker saiu.
O prêmio é o mais importante reconhecimento profissional que um arquiteto pode receber, em vida, pelo conjunto de sua obra construída no contexto criativo e social. Ou seja, a honraria exalta o desenvolvimento de um trabalho relevante para a humanidade ao longo de sua carreira.
A primeira edição do Pritzker aconteceu em 1979, com a homenagem a Philip Johnson, arquiteto estadunidense. Desde então foram mais de 45 premiações, sendo metade delas homenagens a arquitetos europeus. Somente seis mulheres tiveram seu trabalho reconhecido, a primeira delas apenas em 2004: a genial Zaha Hadid.
Finalmente, em 2022 o prêmio foi para Diébédo Francis Kéré, um dos mais renomados arquitetos contemporâneos, com uma produção inquestionável distribuída por vários continentes: escolas, pavilhões, moradias, desenho de mobiliário etc. Um portfólio tão diverso e significativo que para nós não foi nenhuma surpresa o resultado dessa homenagem, ainda que o histórico da premiação indique o contrário.
Foi na graduação, quando as referências que nos apresentaram não davam conta dos nossos anseios, que, pesquisando por conta própria, conhecemos o trabalho de Kéré. Por isso, quando o prêmio foi anunciado, do lado de cá houve um alívio, um “até que enfim!” seguido de algumas lágrimas.
O histórico de escolhidos ao prêmio evidencia o apagamento estrutural. Não se trata de um questionamento acerca da produção dos homenageados anteriores, mas, sim, trazer à baila a reflexão de que a academia e o mercado de trabalho dão destaque às criações de homens brancos e se esquecem de mulheres e, sobretudo, de pessoas negras.
Quando o assunto é premiar pessoas de pele preta tudo se torna ainda mais raro.
Kéré é o primeiro arquiteto negro e o primeiro arquiteto africano a ganhar um Pritzker. Ser o “primeiro negro a” ganhar um prêmio, acessar um lugar que até então apenas brancos acessaram, tem um peso muito grande. Um peso que só nós, negros, entendemos. A conquista desse prêmio por Kéré traz alívio porque demonstra ser possível estarmos ali. Estamos falando de representatividade no seu sentido mais amplo, que contempla também uma visão de mundo.
Kéré é inspirador por sua obra, trajetória e ativismo social. Se, para alguns, pode parecer mais uma história de superação a sua saída do continente africano para estudar na Europa, para nós, é notável que o diferencial de Kéré está exatamente aí: em reconhecer o que de mais rico havia em sua comunidade e reforçar a bagagem cultural ao longo de sua trajetória profissional.
Seu primeiro projeto, a Escola Primária de Gando, foi construído em 2004. É bastante simbólica a sua produção de arquitetura, tanto do ponto de vista da união de saberes ancestrais com a tecnologia contemporânea, quanto da maneira participativa e libertadora como foi executada com a ajuda da comunidade.
A decolonialidade aparece como uma marca inovadora dos seus projetos, superando as referências eurocêntricas na maneira de pensar o local, a estética, os materiais, a técnica e o compartilhamento do conhecimento no canteiro de obras. Uma desconstrução de padrões necessária para pensar soluções contemporâneas para os territórios devastados pela exploração colonial nos diversos locais do globo.
Nos identificamos com o trabalho de Kéré porque em nós também existe o propósito de retribuir àqueles que vieram antes de nós. Um anseio por fazer um trabalho socialmente relevante, com impacto positivo e significativo. Kéré tem fama mundial mas nunca se esqueceu dos seus. Os projetos de Kéré reforçam a importância do trabalho coletivo, da valorização da terra e do seu povo.
Vê-lo premiado nos deu uma satisfação pessoal, pois é inspirador lembrarmos de que vale a pena manter a própria essência e valorizar as suas raízes.
Viva Kéré e todos os arquitetos pretos!