Entrar na Casa na Areia – projetada em 2010 pelos irmãos portugueses Manuel e Francisco Aires Mateus – é mais do que literalmente colocar o pé na areia, é também vivenciar a metamorfose da cabana ancestral em arquitetura contemporânea.
Desde a Antiguidade, a arquitetura buscou se afastar da imagem arquetípica da casa primitiva construída com galhos e peles sobre solo compactado, sofisticando as construções com novos materiais e camadas.
A imagem da terra batida remete às habitações rurais – feitas sem projeto e sem desenho; raros arquitetos se propuseram a prolongar solos naturais em direção ao abrigo coberto.
São exceções, por exemplo, a Sinagoga Portuguesa de Amsterdam – projetada por Elias Bouwman em 1671 –, com suas finas camadas de areia recobrindo o assoalho de madeira para atenuar o som dos passos e absorver a sujeira dos sapatos; ou a Casa Tanikawa – do arquiteto japonês Kazuo Shinohara, de 1974 –, onde a terra inclinada invade a sala envidraçada, sem distinção entre o material do piso interno e da floresta.
Localizada em Comporta, Portugal, a casa dos Aires Mateus, justamente ao retirar o piso e expor a terra do solo, recupera a imagem primitiva da casa, que a arquitetura tentou esquecer nos últimos séculos.
Concebida como um refúgio privado de férias para o cliente e família, hoje a casa se transformou em um pequeno hotel de quatro quartos, locados em construções separadas – duas de madeira e palha e duas de concreto branco.
O areal conecta os pequenos casebres e invade a sala de estar e a cozinha. Não há, portanto, qualquer distinção de piso entre a praia e a área coletiva da residência. Manuel Aires Mateus brinca que “se derrubarmos uma taça de vinho no chão” bastaria “meter uma pá e jogar o piso fora”.
A experiência de morada em lugar isolado – próximo da natureza – ganha contornos desafiadores para modos de vida urbanos convencionais. Constrói-se aqui uma nova relação com o tempo e o piso de areia causa uma desaceleração. A inércia dos movimentos, assim como o atrito dos pés com o chão, retarda acontecimentos e a agilidade de ações. Para o cliente, João Rodrigues, o piso obriga a pessoa a se acalmar; na areia, tudo demora mais: "É uma casa de férias onde nós gostaríamos de nos desligar daquele ritmo da cidade”.
Outras duas relações com o tempo mediaram o projeto. A casa dialoga com a raiz da arquitetura popular histórica da região em seus materiais e simplicidade da planta. Por outro lado, o projeto subverte a relação dos moradores locais com as horas do dia: por passarem a maior parte do tempo de trabalho sob o sol, a casa tradicional busca se esconder da luz natural; já os turistas esperam o oposto, impondo à arquitetura contemporânea diferente orientação das fachadas e maiores janelas.
Os arquitetos, ao trazerem para a contemporaneidade a atmosfera ancestral e tradicional, incorporam tecnologias e confortos da vida moderna à cabana. Sob a própria areia, há uma base de concreto onde passa aquecimento para o piso: no inverno, um areal aquecido.
Além de nos propor uma reflexão sobre as dimensões do tempo no cotidiano, a Casa na Areia evoca questões sobre o essencial do modo de vida contemporâneo. Quais seriam as comodidades atuais das quais não abriríamos mão? Que elementos das casas tradicionais e primitivas poderíamos trazer para nossa morada? Como o espaço poderia modificar nossa relação com o tempo?