Conheça a Casa de Vidro — a primeira obra de Lina Bo Bardi
Em outro post, já detalhamos como foram a vida e a obra de Lina Bo Bardi, e o arquiteto Marcelo Ferraz também nos contou sobre a sua experiência no trabalho de décadas com a arquiteta. Agora, é hora de entender com mais profundidade a primeira obra construída pela ítalo-brasileira: a Casa de Vidro.
No coração do Morumbi, Lina construiu a casa em que passou grande parte da vida no Brasil — e que marcou a arquitetura do país que ela escolheu como lar. Confira!
Por que Lina Bo Bardi se tornou um ícone?
Lina Bo Bardi nasceu em Roma, em 1914, o mesmo ano em que a Primeira Guerra Mundial teve início. Ela faleceu em 1992, aos 78 anos, e sua trajetória pessoal e profissional se misturam, de muitas formas, aos avanços e contradições do século XX.
Hoje, as mulheres são maioria nos cursos de Arquitetura e Urbanismo no Brasil. Mas, quando Lina graduou-se como arquiteta na Universidade de Roma, em 1939, a realidade era bem diferente. O terreno para mulheres exercerem a profissão era ainda mais árduo do que é atualmente.
O começo da carreira da arquiteta coincidiu com a eclosão de mais uma guerra mundial e a união dela ao Partido Comunista clandestino contra o fascismo. A experiência traumática nos anos de guerra ajudou, justamente, a moldar a visão de Lina sobre a função de uma casa. No livro "Lina por escrito", organizado em 2009 por Silvana Rubino e Marina Grinover, um texto da própria arquiteta explica:
(…) enquanto as bombas demoliam sem piedade a obra do homem, que compreendemos que a casa deve ser para a ‘vida’ do homem, deve servir, deve consolar; e não mostrar, numa exibição teatral, as vaidades inúteis do espírito humano.
Para ela, a casa deveria ser “uma aliada do homem, ágil e serviçal, e que pode, como o homem, morrer”.
Uma arquitetura particular
Quando mudou-se para o Brasil e iniciou os trabalhos no país, Lina estava alinhada aos ideais modernistas correntes do período, mas a obra dela expressou essas ideias de uma forma muito particular. O usuário, esse “homem” ao qual ela alude, era o protagonista dos projetos que concebeu.
Não eram os materiais ou as formas que estavam em primeiro plano nos trabalhos de Lina, mas a vida cotidiana. Ela construía com atenção, levando em conta como seria a experiência de quem frequentasse ou habitasse as obras que projetou.
Mulher e estrangeira, Lina Bo Bardi tornou-se icônica ao experimentar a Arquitetura Moderna ao seu próprio modo, desafiando um período ainda mais machista e um Brasil que experimentava grande nacionalismo.
A história e a beleza da Casa de Vidro
Em 1946, Lina mudou-se para o Brasil com o marido, o jornalista e crítico de arte Pietro Maria Bardi. O empresário Assis Chateaubriand, que o casal conheceu em uma exposição de arte italiana no Ministério da Educação, os convidou a montar e dirigir um museu em São Paulo.
Foi o embrião do atual MASP — também obra de Lina. A primeira versão do Museu de Arte de São Paulo estava longe da Avenida Paulista: era uma adaptação de parte da sede do Diários Associados, grupo midiático de Chateaubriand, na Rua 7 de Abril. Lina assinou o mobiliário e o design de interiores.
A parceria com Chateaubriand foi promissora, e em breve Lina passou a frequentar o Jardim Morumbi, área ainda nova para os empreendimentos paulistas. Ela estava em busca de um terreno para implementar o Instituto de Arte Contemporânea, também uma ideia do empresário. Chateaubriand adquiriu terras na região para construir o IAC, mas acabou vendendo-as.
Quem não desistiu do local foi Lina, que se encantou tanto que decidiu fazer naquela área um ateliê e morada para artistas. O projeto foi levado adiante, mas acabou tomando outro rumo, e se tornou a casa da arquiteta e do marido por 40 anos. Era a Casa de Vidro.
Uma “casa-mirante”
A professora da Universidade Estadual de Goiás, Maíra Teixeira Pereira, estuda com atenção algumas construções de Lina na tese de doutorado As casas de Lina Bo Bardi e os sentidos do habitat.
Para ela, a Casa de Vidro — ou Casa do Morumbi, como Lina a chamava originalmente — é um verdadeiro manifesto arquitetônico, idealizada pelo casal Bardi como “uma resposta à burguesia paulistana considerada por eles de mau gosto, que ainda concebia os casarões de estilo históricos e aos arquitetos que duvidavam da capacidade de Lina”.
Lina tinha à disposição um terreno de 7.000 m² de natureza e escolheu construir a casa e um jardim em uma área de vegetação mais rasteira em meio à zona virgem de Mata Atlântica. À época, era possível vislumbrar a capital paulista no horizonte.
A fachada de vidro que permeia o amplo espaço de convivência da edificação traz a paisagem para dentro da casa e, sob a perspectiva da professora Maíra, faz com que ela seja uma “casa-mirante”.
Uma construção como a Casa de Vidro, na visão da professora, constrói o espaço para o indivíduo moderno, da liberdade, que busca avançar em direção ao horizonte. Não é um indivíduo que se esconde, é quem quer conquistar o mundo.
“Essa é a casa de uma conquistadora. Ela permite que o olhar avance sobre o horizonte da cidade de São Paulo, talvez o lugar que Lina quisesse conquistar como arquiteta”, diz Maíra.
Uma casa de contrastes
Em 1951, a Casa de Vidro foi a primeira obra de Lina a sair do papel e ser finalizada. Ao longo do tempo, seu traço amadureceu e se modificou bastante, culminando em projetos conceitualmente mais complexos, como a reforma do Solar do Unhão e o Sesc Pompeia. Mas, já nessa obra inaugural, é possível perceber uma característica que sempre a acompanhou: o gosto pelos contrastes.
A Casa de Vidro é composta por dois blocos principais: um volume de aço e vidro, suspenso por pilotis, comportando a sala de convivência (living) e a biblioteca, e um volume opaco e caiado, preso diretamente ao chão. Entre eles, uma cozinha com eletrodomésticos que, à época, eram de última geração.
Essa solução vence a topografia do local, ao respeitar o desnível do terreno. Ao mesmo tempo, os pilotis são a melhor alternativa para tocar o menos possível a natureza ao redor.
O volume principal, suspenso sobre pilotis, é industrial, fabril, enquanto o volume do fundo apresenta uma arquitetura que a professora Maíra chama de tradicional, em que Lina faz referência à casa caiada brasileira:
Ela traz da Itália esse diálogo que os italianos também propuseram, entre moderno e tradicional, e aqui ela amplia inserindo as referências populares, da arquitetura simples, do homem comum.
Uma casa para a mulher
Embora não se declarasse propriamente feminista, Lina engajava-se nas questões de libertação feminina correntes no período. A Casa de Vidro, segundo a professora Maíra, é um exemplo da preocupação de Lina com a influência da arquitetura sobre a rotina das mulheres, em especial aquelas que ganhavam terreno na vida profissional, mas ainda não conseguiam se dissociar por completo dos papéis domésticos.
“A casa tinha que ajudar muito essa mulher autônoma, mais independente, mas que dificilmente tinha como se livrar, vamos dizer assim, do trabalho doméstico”, diz a professora.
Por isso, uma casa moderna precisava ter uma cozinha mecanizada e racional. “Então Lina concebe uma casa mais funcional e mais prática para a mulher, para que ela pudesse ter uma vida fora de casa, que não fosse só a vida doméstica. O próprio mobiliário deveria ajudar essa mulher a fazer tudo de maneira mais rápida”.
Inspirações para você
A professora Maíra se debruçou sobre todos os projetos de casas realizados por Lina, como a Casa Valéria Cirell. A pesquisa dela apurou que há cerca de 30 trabalhos com esse programa. E, para ela, o que a arquiteta deixou como legado para os profissionais contemporâneos?
“Talvez o que a Lina tenha deixado de grande lição seja a sua capacidade de interpretar os lugares onde iria inserir os seus projetos e, como consequência, desenhar edifícios que respeitavam o modo de vida do seu futuro morador e as especificidades do lugar em que seriam implantados, sejam eles naturais, históricos ou culturais.
A arquitetura de Lina avança na relação industrial e artesanal, erudito e popular, natural e construído, proposto originalmente pelos arquitetos modernos, estabelecendo assim um diálogo dialético, entre elementos até então vistos como antagônicos”, a professora responde.
A aliança entre a pré-fabricação e o cuidado com o modo de vida do morador está presente nos cinco estudos que Lina realizou e chamou de Casas Econômicas. Com diferentes estilos e dimensões, são projetos idealizados para serem casas populares.
Maíra finaliza: “Ela pensava no espaço que permitisse que a vida acontecesse de maneira plena. Isso só vai acontecer se o construtor souber como é essa vida, respeitar os limites dela, criar espaços para que ela aconteça. Lina entendia como essa vida acontecia, e era a respeitando que fazia os seus projetos”.
Gostou de saber mais sobre a Casa de Vidro e Lina Bo Bardi? Que tal dividir com outros arquitetos como o projeto e a arquiteta inspiram você? Conte para a gente nos comentários!