Arte e técnica em união pioneira
Algumas das ideias mais influentes da arquitetura e do design do século 20 não são originárias da Alemanha da Bauhaus ou da França de Le Corbusier. Elas nasceram na Rússia revolucionária da Vkhutemas. Primeira instituição de nível superior a congregar arte e técnica no mundo, a Vkhutemas constitui uma explosão de criatividade inovadora que durou pouco mais de uma década, no período inicial da Revolução Socialista de 1917. Seu legado permanece pouquíssimo estudado, silêncio causado pela ascensão do regime totalitário stalinista e sua arte oficial, e pelo embate ideológico imposto pela Guerra Fria. Com a exposição “Vkhutemas: O futuro em construção 1918-2018”, em cartaz até o fim de setembro no Sesc Pompeia, os curadores Celso Lima e Neide Jallageas contribuem para a revisão histórica da escola. A mostra em São Paulo resulta de dois anos de ampla arqueologia em arquivos dispersos, tendo como principal fonte cartas, documentos, projetos e fotografias.
A experiência russa tomou forma em 1918, um ano após a revolução bolchevique, quando as academias de arte do regime czarista são substituídas por ateliês livres, os Svomas. Seu caráter é indissociável do espírito de emancipação popular daqueles anos. Camponeses e trabalhadores fabris são convocados a participar, sem exames de admissão – 80% da população era iletrada. Os ensinamentos têm duração de dois anos e dividem-se em bases introdutórias e oficinas: cor, superfície, modelagem e química; gravura, fotografia, produção de objetos, teatro e literatura, entre outras.
A vanguarda artística – sobretudo a corrente construtivista – participou ativamente das iniciativas instaladas em São Petersburgo e Moscou. Afinal, a nova arte deveria ampliar o debate social, econômico e político. Sua expressão passa a abranger, assim, os objetos tridimensionais e gráficos do cotidiano. Ligados ao construtivismo e ao suprematismo, Kazimir Malevich, Aleksander Rodchenko e El Lissitzky atuam como professores, ao lado de outros nomes célebres, como Marc Chagall e Wassily Kandinsky.
Naquele primeiro ano, os Svomas são visitados pelo arquiteto Walter Gropius, que em 1919 inaugura a Bauhaus em Weimar. É inegável a influência do programa soviético no conhecido curso básico da escola alemã. O diálogo entre ambas será constante, com correspondência e intercâmbio de alunos e professores, principalmente na Bauhaus sob direção de Hannes Meyer, que a aproximou dos ideais sociais. Na opinião de Celso Lima, diferentemente da Bauhaus, “na Vkhutemas o objetivo era a construção de uma nova sociedade. O poder está no povo”. A apropriação pela escola alemã foi sobretudo estética, ele defende: “A Bauhaus bebeu das linguagens construtivistas e foi importante para sua promoção no ocidente, mas com perda do caráter social fundador”. A nova plasticidade vem sob influência do movimento holandês De Stijl, que também bebeu na fonte soviética, na Bauhaus já transferida para a cidade de Dessau e voltada à produção de mobiliário e objetos para a indústria, cujo símbolo máximo são cadeiras em balanço de ferro tubular – na Vkhutemas, o arquiteto Vladimir Tatlin trabalhou com a mesma tipologia.
As Vkhutemas, acrônimo para “Ateliês Superiores Técnico Artísticos do Estado”, haviam surgido em 1920 a partir da reorganização dos Svomas. Instalam-se as faculdades de Arquitetura, Metal e Madeira, Poligráfica, Cerâmica e Têxtil. A interdisciplinaridade é uma das características marcantes do currículo, assim como a não distinção de gênero. Um terço dos 1.400 alunos são mulheres, aceitas em todas as faculdades.
A adequação da forma à função também encontra sua origem na nova visão de sociedade da União Soviética. Em 1925, na mesma exposição internacional em Paris na qual Le Corbusier apresenta o Pavilhão do Espírito Novo – inaugurando “os cinco pontos da nova arquitetura” –, Rodchenko expõe o Clube dos Trabalhadores de Lênin. Enquanto o arquiteto suíço atenta, sobretudo, a um novo paradigma estético, os soviéticos expressam um programa social (mais tarde, a preocupação estará nos conjuntos habitacionais de Le Corbusier). O pavilhão russo voltava-se ao lazer educacional, com leitura, xadrez e filmes, servidos por móveis “transformáveis”, como uma mesa com tampo reversível, que se adequa a diferentes atividades. Estão ali versatilidade e economia de projeto, que Max Bill colocará em seu icônico banquinho da escola de Ulm, nos anos 1950. Outra invenção no âmbito do mobiliário foi o uso do aglomerado de madeira, em resposta à precariedade material da Rússia no período.
A arquitetura daqueles primeiros anos de União Soviética faz nascer novos programas voltados ao convívio: lavanderias, creches, banhos e cozinhas separam-se do espaço privado e tornam-se comunais. Mudança retomada no século 21 em empreendimentos imobiliários para millennnials das grandes cidades. O antecedente do movimento Do It Yourself também estava na Vkhutemas, que publica um manual para a confecção doméstica de mobiliário, objetos, roupas e acessórios. No vestuário, peças multiuso, adaptáveis a diferentes funções, são idealizadas por Varsáva Stepanova, e Rodchenko cria um modelo de roupa de trabalho sem gênero, proposta que será retomada pelos movimentos de contracultura dos anos 1960 e 1970. Ainda na Faculdade Têxtil, as designers Stepanova e Liubov Popova, junto à colorista Liudmila Maiakovskaia, desenvolvem estampas com efeitos óticos e geométricos e aliam o desenho a narrativas, base da concepção contemporânea de “pattern”. “Os tecidos contam coisas, informam a população sobre aquele mundo novo”, diz o curador.
Em muitos casos, a inventividade não foi acompanhada por meios materiais e tecnológicos de realização, o que condenou muitos dos projetos às pranchetas. Outros foram destruídos no regime de Stálin, que ascende ao poder em 1923 e gradativamente aniquila as propostas inovadoras das escolas, até seu fechamento definitivo em 1930.
A exposição lida com a falta de documentação museográfica de maneira belíssima. Maquetes, móveis, modelos tridimensionais, cartazes, louças e padrões têxteis foram reproduzidos por um grupo de jovens designers, arquitetos e alunos. O conjunto, exposto na área de oficinas do Sesc Pompeia, traduz a vivacidade daqueles tempos de utopia e crença em um futuro melhor.