Viajar para o Japão é o sonho de muitas pessoas. Sua rica história, cultura, gastronomia e arquitetura fazem do país um destino especial. Nesta coluna, embarcamos juntos para conhecer uma iniciativa de turismo regenerativo no interior do Japão, na qual a arquitetura foi usada como ferramenta de transformação. Essa coluna é, também, um convite à reflexão e ao diálogo sobre como podemos repensar o turismo. Já ouviu falar do termo turismo regenerativo?
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Nessa viagem, seguimos para o interior do Japão, na província de Fukui, numa pequena cidade histórica chamada Kumagawa-juku, que, antigamente, fazia parte de uma importante rota chamada Saba kaido, pela qual se transportavam a cavala (saba, um tipo de peixe) e outros alimentos do litoral da baía de Wakasa até Quioto, a então capital.
Lá conheci o Sota, um local que, depois de sua jornada em Tóquio, decidiu retornar para Fukui em busca de mais tempo com a família e melhor qualidade de vida. Ciente do potencial turístico da região, resolveu criar algo para si que lhe conferisse propósito e que pudesse mudar o destino da cidade. O Japão enfrenta um grande desafio populacional com a depopulação de várias regiões, envelhecimento populacional e baixas taxas de natalidade. Nesse seu movimento de retorno para o interior, percebeu uma oportunidade num grande desafio para o Japão: as akiya, que são casas vazias e abandonadas espalhadas por todo o país, consequência da rápida queda populacional.
De acordo com estatísticas oficiais, existem cerca de 8,5 milhões de casas abandonadas no Japão, mas estima-se que o número real possa estar próximo de 11 milhões. Espera-se que as akiya se tornem ainda mais comuns à medida que a população envelhece, com o governo projetando que elas representam 30% de todo o mercado imobiliário nos próximos 10 anos. Um dado alarmante!
O fenômeno se agrava acelerado pelo envelhecimento da população, a fuga dos jovens para cidades maiores e os altos custos para restaurar e adequar casas antigas num país com constantes terremotos e desastres naturais. Dependendo da situação, é mais barato construir algo novo ou mudar-se para um lugar com mais estrutura e oportunidades de trabalho do que reformar uma casa antiga.
Essa situação cria um grande problema imobiliário. Contudo, esse mesmo problema pode também ser percebido como uma oportunidade para o mercado do turismo. Na busca por soluções para a questão das akiya (casas vazias e abandonadas), o governo vem criando maneiras de incentivar a compra e as reformas dessas casas, na esperança de revitalizar regiões. Essa medida vem de encontro com o urgente problema do turismo excessivo, que precisa dar vazão ao grande fluxo de turistas que se concentra em poucos destinos.
E foi justamente essa a oportunidade que o Sota percebeu em Kumagawa-juku. A de retornar para a sua região e reformar casas abandonadas, usando a arquitetura como ferramenta. Através de um projeto que engloba hotelaria, experiências culturais e o envolvimento da comunidade local, criou sua empresa a Dekita (traduzindo, o termo expressa uma tarefa que foi concluída, um item que foi produzido, ou uma ação foi realizada com sucesso) e o braço que se ocupa da hotelaria: Yao Kumagawa.
Ali ele começou a reformar algumas casas vazias (akiya) incorporando tradição, saberes ancestrais e a mão de obra local durante o processo. O projeto opera como uma célula regenerativa para a comunidade, sendo um sopro de inspiração e um modelo que nos convida a repensar como fazemos e consumimos o turismo.
Essa iniciativa ajudou a mitigar o contínuo movimento de abandono das casas, mantendo a cidade ativa ao despertar o interesse tanto de turistas internos quanto de estrangeiros por este patrimônio histórico e cultural.
Atualmente, há quatro casas destinadas à acomodação. Escolhi uma das primeiras a serem reformadas para me hospedar. Compacta, a casa é dividida em dois andares, contendo dois quartos no andar de cima, um banheiro com chuveiro e banheira e uma cozinha integrada à sala no térreo. Ao entrar, encontrei uma casa de madeira e barro em tons terrosos, com shoji (esquadrias de madeira com aplicação de washi, folhas de papel) e decoração minimalista.
O contraste entre a arquitetura das fachadas preservadas das casas, remetendo ao período Edo (1603-1868), e a modernidade da reforma me chamou a atenção e me fez refletir sobre um ponto importante que é: como interpretamos as culturas, de um modo geral. Neste caso, a diferença entre o imaginário comum pintado pelo estrangeiro e o olhar do japonês.
Durante a reforma, ao invés de olhar para o tradicional em busca de um aspecto original irretocável, que deixou de existir com o passar do tempo, Sota buscou a valorização da configuração já existente da casa ao incorporar saberes e técnicas ancestrais às facilidades modernas que dialogam com a atualidade.
As paredes foram retrabalhadas usando com a tradicional técnica de bambu trançado rebocado com um preparado de terra em ambos os lados; as janelas tiveram suas esquadrias de madeira refeitas e o papel washi reaplicado; as vigas estruturais (troncos de árvore e toras) foram restauradas e fortificadas; as tábuas de madeira que compõem a paginação do piso do segundo andar foram restauradas.
Por outro lado, o genkan (área onde se deixam os calçados ao entrar na casa) foi estendido e seu desenho incorporado ao traçado da casa como um corte que separa a área da cozinha e sala do resto da casa; o tatami foi incorporado apenas num nicho da sala; o banheiro incorporou o vaso sanitário inteligente e uma sala de banho com banheira e revestimento de madeira; a cozinha foi repensada com soluções modernas para pequenos espaços; assim como a decoração carrega elementos estéticos do minimalismo moderno japonês. A reforma da casa foi pensada de um ponto de vista japonês para japoneses.
Passamos duas noites e três dias em Kumagawa-juku. Além de passear pela cidade, curtimos a casa e aprendemos sobre esse movimento de transformação e integração com o entorno estimulado pelo uso da arquitetura como instrumento. Essas descobertas não estavam postas em forma de folhetos educativos ou textos no site oficial. Elas desabrocham nas entrelinhas e sutilezas. A beleza se revelou no despertar do nosso interesse em conhecer os processos de restauro e de engajamento com a comunidade.
Que presente saber que todos os ingredientes usados em nossas refeições foram frescos, sazonais e dos arredores. Nas grandes cidades brasileiras, fomos culturalmente habituados a ter de tudo o ano todo. Ao supervalorizarmos a comodidade, deixamos de apreciar a beleza da sazonalidade dos alimentos e da apreciação desses ingredientes enquanto disponíveis. No Japão, a sazonalidade e a localidade dos alimentos são características desejadas e admiradas de um modo geral.
Nossos jantares foram preparados por moradores locais numa casinha ao lado da nossa, usando ingredientes, obviamente, sazonais e regionais. Do inverno úmido e chuvoso, experimentamos ensopados, carne de caça (veado), conservas, arroz local, preparos com kudzu e frutos do mar da baía de Wakasa. Nas duas noites que ficamos em casa, todos os dias, às seis da tarde, uma senhora bateu à porta seguido de um tímido "konbanwa!" (boa noite) trazendo a refeição em caixas de madeira.
Para o café da manhã, recebíamos porções acompanhadas de um informativo sobre os pratos a serem consumidos, com dados culturais e, claro, a forma de preparo. Seguimos a receita e aproveitamos o nosso próprio café da manhã aprendendo, no processo, sobre o que iríamos comer. Uma maneira divertida e participativa de aprender a cozinhar especialidades locais.
As flores e plantas usadas na decoração são todas dos arredores, colhidas pela própria equipe no desejo de trazer as cores das estações do ano para dentro de casa. No inverno gelado e úmido, contemplamos as texturas e o verde-musgo de um tipo de samambaia, envasada em uma pequena cerâmica torneada na mão com formas orgânicas. Puro omotenashi (termo japonês que define o conceito de hospitalidade que antecipa e atende às necessidades dos outros de forma atenciosa e meticulosa, sem esperar nada em retorno).
É possível vivenciar a cultura regional através do preparo do arroz numa panela tradicional, num fogão antigo restaurado; sair para fazer trilha e levar uma cestinha de piquenique com petiscos locais e folhas de kudzu para uma infusão; e ver de perto o entalhe em madeira de dois artesãos que vivem na cidade, um cria esculturas e peças para templos e casas e o outro faz placas de madeira. E, claro, conversando com a equipe é possível preparar uma visita para comprar os ingredientes para cozinhar e até mesmo visitar a produção de algum insumo nas redondezas.
O litoral está a apenas 16 quilômetros da cidade e é todo recortado com baías, enseadas, praias, algumas cidades históricas e pontos de interesse cultural. Durante os meses mais quentes, é possível desenhar uma programação que contemple uma visita à beira mar. Fiquei com muita vontade de me hospedar numa vila de pescadores e passear num barco de pesca.
Essa célula regenerativa já começa a se espalhar e ocupar outras casas vazias. Há novos cafés e lojas, moradores locais empreendendo em mais restaurantes, e, inclusive, pessoas de outras partes do Japão estudando abrir negócios em Kumagawa-juku.
Vivenciar esse tipo de iniciativa faz a gente refletir em como queremos seguir fazendo nossas escolhas no turismo.
O que é turismo regenerativo?
O turismo como conhecemos foi se desenhando de uma maneira passiva e extrativista. Fomos instruídos a pagar para sermos servidos. O turismo regenerativo é uma abordagem que se propõe a minimizar o impacto negativo da atividade turística e a contribuir ativamente para a melhoria e regeneração ambiental, social e econômica do local.
Antes de buscar por hospedagens que se enquadrem como regenerativas, é necessário se reeducar e perceber-se mais responsável ao fazer turismo. Nossa atitude também precisa ser regenerativa ao demonstrar genuíno interesse sobre os processos e não apenas buscar por lugares que se vendem ou sejam vendidos sob o selo regenerativo.
O termo em si surge posteriormente às diversas iniciativas já concretizadas numa tentativa de traduzir a percepção dessas iniciativas que agem em resposta à necessidade de mudanças no turismo através de um olhar mais maduro e responsável ao conferir soluções que beneficiem diretamente os moradores locais, ao mesmo tempo que se esforça para restaurar e melhorar os ambientes naturais e patrimônios históricos.
A regeneração também precisa acontecer em nós, através da reflexão de cada indivíduo ao buscar ser culturalmente mais participativo na tentativa de compreender e envolver-se com a realidade do outro. Ao entendermos o impacto que as nossas escolhas têm no entorno e ao nos responsabilizamos por elas nasce uma genuína preocupação de se fazer diferente e o discernimento de fazer decisões mais justas com o todo.
A busca por maior envolvimento vem de maneira natural ao amadurecermos como turistas.
Para vivenciar esse tipo de experiência é necessário estarmos abertos a nos educarmos e a traduzirmos novas percepções. Há muitas pessoas buscando fazer diferente. Nós também podemos ser a mudança.
Akiya e turismo regenerativo
Muitas pessoas já perceberam a oportunidade de reformar akiya e transformá-las em fonte de renda. Contudo, há diversas maneiras de revitalizar essas moradias e colocá-las novamente no mercado. Das mais às menos responsáveis. Há iniciativas interessantes que buscam funcionar como células regenerativas, assim como outras focadas apenas em rendimento com os aluguéis temporários.
Há muitas casas sendo reformadas sem se aterem a aspectos culturais, históricos e arquitetônicos. A princípio é sedutor uma fonte de renda primária ou complementar para todos os envolvidos.
Porém, sem um projeto ou regulamentação, em maior escala essas reformas desconectadas da responsabilidade social e focadas, primariamente, no lucro balizado pela demanda do turismo, injetam no mercado uma imensa quantidade de imóveis igualmente vazios, sem inquilinos fixos; com decoração barata, genérica e sem conexão cultural; e sem envolvimento com a comunidade local. Essa decisão acaba acelerando o processo de gentrificação e turistificação dos lugares.
Sabe como mudamos essa situação? Nos educando como turistas. Nossa demanda (busca) por serviços mais engajados com a cultura local cria a necessidade de adequação da parte de quem presta o serviço. Assim como o prestador de serviço precisa lembrar que ele é o embaixador da própria cultura e é importante que ele seja o protagonista do que é ofertado.
Nossas demandas moldam o turismo. Cada centavo que gastamos cria a oportunidade de uma nova oferta. Nosso comportamento impacta toda a cadeia de quem presta serviço. Quanto mais responsáveis são as nossas escolhas, mais justo é o turismo para os locais.
Num cenário de turismo excessivo e de viagem como métrica de vaidade, precisamos sempre estar nos reeducando e dispostos a aprender. O turismo pode ser uma bênção ou uma maldição. Nosso comportamento como indivíduo (turista) associado às políticas públicas e privadas do próprio destino promovem o equilíbrio ou instauram o caos.
Nesta visita ao Japão, também vivenciei outras duas experiências envolvendo a arquitetura como ferramenta de transformação: outra akiya reformada na região central de Kanazawa e uma kura (uma espécie de depósito) antiga na cidade de Kakunodate que foi usada para estocar tecidos de kimono.
Estar exposto a essas novas maneiras de pensar o turismo me fez refletir em como viajar é um exercício constante de amadurecimento. Que essa partilha seja percebida como um convite à reflexão sobre a nossa responsabilidade ao se pensar o turismo. Como queremos que ele seja daqui para a frente? A resposta está na escolha de cada um.
Gostaria de conhecer o Japão? Que lugares você gostaria de visitar? Já havia escutado o termo turismo regenerativo? Já vivenciou alguma experiência regenerativa?