Fazer muito com pouco é um desafio que sempre esteve presente em nossas carreiras e não é uma exclusividade nossa. Pensar habitações com áreas reduzidas faz parte da história da arquitetura, seja nos conjuntos habitacionais na Europa do pós-guerra, nas soluções projetuais para territórios com alta densidade demográfica, como o Japão, ou em alguns bons exemplos brasileiros de Habitação de Interesse Social.
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No Brasil, o déficit habitacional é um problema constante desde o século 20, devido ao crescimento populacional, a intensa ocupação urbana e a desigualdade social. É uma demanda que segue crescente e que, enquanto sociedade, teremos que nos desdobrar para resolver.
Em Metrópole, legislação e desigualdade (2003), a arquiteta e urbanista Ermínia Maricato faz uma análise sobre como a segregação urbana é parte promotora da desigualdade social. A dificuldade de acesso a serviços como transporte, saúde, educação, saneamento, drenagem e moradia significa menos oportunidades de emprego, de profissionalização, de condições de ascensão social e, consequentemente, mais exposição à discriminação, violência e ao abandono.
O acesso à moradia digna é um direito assegurado pelo artigo 6º da Constituição Federal de 1988 e, mais do que a condição de ter uma moradia, é necessário promover um quadro favorável à infraestrutura, saneamento básico e deslocamento no entorno dessas habitações.
Todo apaixonado por sua profissão tem aquele tipo de demanda que faz os olhos brilharem… No nosso caso são os pequenos espaços. Sabe aquela casa que as pessoas pensam “melhor demolir e começar do zero” ou “é impossível atender todas as necessidades nesse espaço”?! Pois é aí onde nos sentimos realizadas.
Em primeiro lugar porque nos conecta com a realidade da imensa maioria da população brasileira, que vive com poucas condições e precisa de muita criatividade para lidar com o dia-a-dia. Em segundo, porque cada novo desafio solucionado consolida a confiança em nossas habilidades individuais, em nossa capacidade técnica e criativa e, principalmente, no caminho profissional que decidimos seguir.
Acreditamos que a boa arquitetura é uma aliada fundamental quando o assunto é manejar poucos recursos para atender grandes necessidades, sendo uma agente de transformação da qualidade de vida.
Ao contrário do que muita gente pensa, um projeto não nasce de uma inspiração mágica ou surge de repente como solução pronta e finalizada. É sobre estudo e trabalho mais do que qualquer outra coisa e é aqui onde surge o primeiro grande desafio: encontrar referências projetuais.
Em se tratando de casa, a arquitetura brasileira historicamente se dedicou e ainda se dedica majoritariamente à casa burguesa: a moradia com dimensões megalomaníacas, lotes imensos, em condomínios fechados e com recursos financeiros abundantes. Do outro lado, temos a especulação imobiliária produzindo apartamentos minúsculos, sem atenção à arquitetura pensada para o usuário, visando apenas obter sempre o maior lucro possível.
Por isso, ao buscar referências de projetos de arquitetura residencial é comum se deparar com três situações: boa arquitetura em uma escala completamente incompatível, projetos pequenos de boa qualidade mas que atendem apenas um ou dois moradores ou, por fim, espaços pequenos com péssima solução projetual.
Essa situação coloca em dúvida a possibilidade de oferecer boa arquitetura para famílias com poucos recursos, mas as exceções existem e são elas que se tornam referências para as propostas futuras. Queremos que essas propostas se tornem a regra, atendendo vários moradores com conforto mesmo em uma área reduzida.
Outro desafio é aceitar que projetar uma casa pequena é essencialmente diferente de fazê-lo com uma área grande. Não dá para usar a mesma lógica espacial de uma mansão, reduzir a escala e conseguir um bom resultado. São arquiteturas distintas e que precisam ser pensadas como tal. Desenvolver boas soluções para moradias compactas leva tempo, muito desenho, tentativas e dedicação. Estudos que não se perdem, pois vão somando experiência ao repertório e apurando o olhar para soluções simples que resolvem demandas complexas.
Para ilustrar a arquitetura possível em que acreditamos, nada melhor do que apresentar um projeto nosso com área reduzida, baixo custo de execução e que tem o bem-estar do usuário como premissa. Na Casa Recomeço, inspiração para esse texto, tivemos a oportunidade de desenvolver um projeto transformador, uma lembrança do porquê escolhemos o que fazemos e para quem desejamos fazer.
No dia do levantamento, o que encontramos foi uma construção deteriorada pelo tempo, pontos de infiltração, esquadrias enferrujadas e boa parte da cobertura implorando por um reparo. Alguns ambientes ocupam a frente do lote, onde anteriormente funcionava um bar; logo ao fundo - encostada no limite do lote - uma edificação que provavelmente seria uma casa, não concluída, sem reboco, alguns ambientes já sem laje e tomados pela vegetação.
Nada do que vimos naquele dia se parecia com uma casa, mas estávamos confiantes no potencial do espaço mesmo com o baixo orçamento para reforma e pouquíssimo tempo para execução. Acreditamos na arquitetura como meio de ressignificar a construção e criar um novo lar para mãe e filha.
Logo na primeira visita apostamos que a melhor alternativa seria concentrar os recursos na parte frontal da construção, onde seria possível abrigar a maior parte das necessidades da família e, apesar do desgaste do tempo, não havia nenhum comprometimento estrutural naqueles 51m².
Dito e feito, o projeto propõe a adequação desse volume principal para abrigar sala, cozinha, dois quartos e banheiro, além de uma pequena ampliação para a criação de uma lavanderia e instalação do reservatório de água. A posição de cozinha, banheiro e lavanderia concentra a infraestrutura hidrossanitária da casa, diminuindo os custos de execução e o impacto na construção existente. Para tornar o único banheiro mais funcional, optamos pelo desenho bipartido, uma solução excelente para quem precisa compartilhar esse espaço.
A fachada precisou de poucas intervenções, pois sem a cobertura de fibrocimento que ficava a frente da construção conseguimos visualizar a volumetria simples e elegante do restante da casa. A marquise existente será mantida para proteger as novas aberturas da fachada. Como solução para o fechamento frontal inserimos um gradil com requadro e tela de aço, uma opção mais econômica do que a construção de um muro. O paisagismo com arbustos faz a proteção visual das aberturas da sala sem tirar a leveza da fachada!
Assim, em 56,1m² de área construída fica disposto o programa da casa atendendo todas as necessidades das moradoras. Os ambientes foram dispostos considerando iluminação e ventilação naturais adequados, a vegetação como estratégia bioclimática, dimensões confortáveis e a possibilidade de ampliação futura. Uma solução simples que, neste e em muitos outros casos, é a melhor solução.
Quando discutimos a arquitetura residencial de pequeno porte estamos falando do presente e, principalmente, do futuro. O impacto da construção civil, a demanda habitacional e o problema socioambiental que as cidades espraiadas representam são todas questões interligadas e que precisam ser encaradas de frente. A era do desperdício precisa acabar e a arquitetura é parte dessa mudança.
Se você leu o nosso artigo Está mesmo tudo bem? vai se lembrar do nosso ponto de vista sobre fazer arquitetura:
Não há como fazer arquitetura sem sensibilidade, sem enxergar o próximo, sem se colocar no lugar do outro, não existe arquitetura sem empatia.
E é daqui que seguimos, propondo uma arquitetura que seja menos excludente e cada vez mais acolhedora.