A arquitetura como transformação social
A arquitetura interfere nas formas de organização da sociedade, mas também é modificada pelo comportamento social. É uma ferramenta potente de transformação social, com impacto direto na percepção dos espaços públicos e comunitários. Gera pertencimento e autoestima em projetos com a participação da comunidade. São muitos os exemplos de ações realizadas em diferentes territórios e escalas que têm a iniciativa de qualificar os espaços públicos. O Projeto Cor em Ação, que acontece na Serrinha, em Florianópolis, é um desses exemplos que abordamos no texto e no ensaio fotográfico realizado pelo arquiteto e fotógrafo José Valério Santos Nunes, e que expõe o óbvio: pequenos e potentes gestos de acupunturas urbanas que transformam vidas.
“As melhorias do espaço público e a requalificação urbana são ações transformadoras que estão acontecendo na Serrinha”, diz o arquiteto Gustavo Andrade, arquiteto, urbanista e pesquisador do Laboratório Cidade e Sociedade da UFSC e coordenador do coletivo ativista Caminhada Jane Jacobs Floripa. Ele foi convidado para a realização da última ação de 2020 chamada Projeto Cor em Ação + Caminhada Jane Jacobs Floripa, cuja intenção foi apresentar, numa live ao vivo no instagram do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Santa Catarina (CAU/SC), o resultado do projeto contemplado com o edital “Acupunturas Urbanas”. “A gente aproveita a caminhada para discutir temas da cidade, um pouco de atenção aos espaços precários promove um ganho de qualidade muito grande”, afirma.
Além de mostrar as intervenções realizadas com a comunidade, as caminhadas são oportunidades para a reflexão sobre o Direito à Cidade, um conceito que surgiu nos anos de 1960 criado pelo sociólogo Henri Lefebvre, que defendia a não exclusão da sociedade urbana das qualidades e benefícios da vida na cidade. Esses direitos são dispositivos que fazem uma parcela da população se mobilizar em busca de transformações em seu contexto. O Projeto Social Cor em Ação exemplifica esse desejo de agir coletivamente.
Projeto Cor em Ação
O projeto se dá na esfera pública a partir da requalificação das vielas, melhorando as condições de acessibilidade. São realizadas obras como degraus, rampas, corrimão, reparos e pintura que transformam a relação dos moradores com a rua e o bairro. O pouco que é feito é o mínimo necessário e é gigante para quem vive naquele território. Foram contempladas a Rua do Paulo numa primeira fase, e as Ruas da Paz e da Sol na segunda etapa, que contou com o patrocínio do CAU/SC, doações e financiamento coletivo.
“O protagonismo dos moradores é fundamental para resolver problemas reais e não o que os técnicos acham que devem melhorar”, afirma o arquiteto Jordi Sanchez-Cuenca coordenador do Projeto Cor em Ação. Ele é formado em Barcelona, mestre pela Bartlett de Londres, doutor pela UFSC, e especialista em habitação social, saneamento e reabilitação de bairros precários. A obra na rua do Paulo foi realizada por meio de mutirão com a comunidade. Já nas ruas da Paz e da Sol, foi contratada mão de obra para a execução dos degraus e rampas e ações de mutirão comunitário para pintar as fachadas e os degraus, reforçando, sempre, a importância da participação para criar senso de pertencimento.
Oficina com as crianças
Para além das intervenções, o Projeto Cor em Ação também planeja atividades que fomentem a educação. Por isso, foi realizada a Oficina de Desenho Criativo e um concurso de cartazes sobre o lixo com as crianças da comunidade, com o apoio da Casa São José. A ideia foi promover conceitos de cidadania e a reflexão sobre o lixo no contexto do bairro e da cidade. Os desenhos foram expostos de forma on-line na rede social do projeto e foi realizada a instalação de lambes-lambes em pontos estratégicos da Serrinha.
(Foto: José Valério dos Santos Neto) (Foto: José Valério dos Santos Neto)
Como tudo começou
Ano de 2017, quando tudo começou. O primeiro movimento deu-se a partir da angústia e da inquietação da Christiane, Claudia, Daniela, Silvana, Ivania e Aline em relação às dificuldades de mães da Serrinha que viviam de forma extremamente precária. Chamado de Projeto Serrinha, o apoio se dava por meio de brechós na comunidade, financiamento colaborativo, doações e mobilização de voluntários para ajudar as famílias na reforma e construção de suas casas. Desta maneira o projeto ajudou as famílias da Antonia, da Ana Maria, Analice e Ciane a terem uma moradia digna. Os arquitetos Antônio Couto Nunes, Vinicius Mariot e Guilherme Cascaes foram colaboradores do projeto, planejando a ampliação de uma das casas.
Neste contexto de pobreza, a Associação de Moradores viu uma possibilidade de expandir as ações para o espaço público e solicitaram à Igreja Luterana da Trindade (CELT), que já estava engajada no processo, que apoiasse a comunidade na melhoria de algumas vielas do bairro. A partir deste momento surgiu o Projeto Cor em Ação cuja primeira fase foi a melhoria na Rua do Paulo, em 2019, com finalização das obras em julho de 2020.
O projeto é uma realização da Comunidade Evangélica Luterana da Trindade (CELT), que atua de forma voluntária e tem o apoio da Associação de Moradores da Serrinha, da Casa São José e de inúmeros voluntários, além dos arquitetos Elisa Lacerda e Jordi Sanchez-Cuenca e a Udesc em Ação.
Maciço Central de Florianópolis
A Serrinha faz parte Maciço Central de Florianópolis, o Morro da Cruz, no centro da cidade, um conjunto de 16 bairros com altos índices de pobreza e precariedade. Surge como parte do desenvolvimento iniciados pela instalação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no Pantanal e Trindade, o que gerou um forte crescimento urbano numa zona que, até então, era praticamente rural.
O que é a Caminhada Jane Jacobs
Nos EUA, na década de 1960, surgiu um grupo que defendia a participação ativa da população na cidade tendo como personagem central a ativista Jane Jacobs. Ela defendia que a população devia ser perguntada quando fosse afetada por qualquer obra de infraestrutura. Inspirado em outras ações pelo mundo, o arquiteto Gustavo Andrade junto com um grupo de amigos criou a Caminhada Jane Jacobs Floripa, que propõe caminhar pela cidade refletindo sobre temas diversos, na maioria das vezes baseados na relação do pedestre com a cidade.
Jane Jacobs era jornalista, foi urbanista e ativista social norte-americana que mudou a visão sobre como devemos analisar os fenômenos urbanos. Ela ficou conhecida por seu livro “Morte e vida das grandes cidades”, de 1961. Para ela, e nada mais atual, o cidadão não deve ser entendido apenas como consumidor passivo de um projeto de cidade imposto. Ele precisa e deve ser ouvido.
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Foto de destaque: Time que participou da caminhada: arquitetos Gustavo Andrade, Jordi Sanchez-Cuenca, Antônio Couto Nunes e José Valério dos Santos Neto e a jornalista Simone Bobsin