A arquitetura como exercício social
Ao longo do século 20, o ideal de tornar a habitação acessível para todas as classes sociais guiou o pensamento arquitetônico moderno, sobretudo a partir das discussões propostas por arquitetos como Bruno Taut, Le Corbusier e os construtivistas russos. O desenho do edifício deveria deixar de ser exclusividade de palácios ou instituições públicas e religiosas, para também definir a construção das casas para as massas urbanas.
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A partir do nono encontro de arquitetos Ciam (Congrès Internationaux d'Architecture Moderne), realizado em Aix-en-Provence em 1953, o esgotamento das estratégias traçadas pelos arquitetos nos anos 1920 e 1930 para universalização da produção arquitetônica começou a ser denunciado por jovens arquitetos europeus como Alison e Peter Smithson ou Oswald Mathias Ungers.
Eles identificavam uma contradição fundamental da arquitetura: apesar de imbuídos de princípios democráticos, os edifícios modernos estavam imersos em uma incomunicabilidade (que, frequentemente, se traduzia em impopularidade das construções) e falta de vínculos com culturas locais. Havia a percepção de que o edifício moderno era um objeto estranho a pousar, indistintamente, por cidades pelo mundo.
A emergente crítica não pretendia desvalidar o projeto ético da arquitetura moderna (a ideia de habitações para todos, por exemplo), mas trabalhar sobre essas questões para evitar a encruzilhada que se anunciava contra a arquitetura moderna e sua decepcionante recepção popular. Era tempo do pós-guerra, quando grandes conjuntos habitacionais surgiam de forma uniformemente fria por todo o mundo para suprir o déficit habitacional das cidades destruídas pelos bombardeios.
Na Itália dos anos 1960, Aldo Rossi, na tentativa de avançar nessa discussão, voltou-se para o estudo da cidade histórica e a presença física do edifício frente aos espaços urbanos.
Mas viria de Portugal nos anos 1970, país recém-saído de uma ditadura severa, a mais radical resposta para a crise moderna: Álvaro Siza. Arquiteto ligado a movimentos de esquerda que lideraram a derrubada do grupo de Salazar do poder, Siza começaria a projetar novos conjuntos habitacionais com colaboração estreita das próprias populações locais, os futuros moradores desses edifícios.
Se nos anos 1950 e 1960 Siza dava seus primeiros passos como arquiteto e pensava a arquitetura frente ao contexto natural, após a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, o arquiteto assumiria protagonismo em projetos sociais do Saal (Serviço Ambulatório de Apoio Local), uma das vitrines do novo governo.
Nesse projeto pioneiro, arquitetos e outros profissionais técnicos trabalhavam em conjunto com comunidades locais para enfrentar o problema da falta de moradias populares em Portugal. Longas discussões, que adentravam noites, permitiam trocas de informações entre anseios das comunidades e dos arquitetos.
Como Siza relatou mais tarde, essa convivência não era inicialmente fluida: mesmo dividindo valores sociais e políticos, as populações pobres que apoiavam o governo revolucionário viam os arquitetos com desconfiança e como representantes de classes mais ricas e alienadas dos problemas cotidianos. No entanto, desse processo radical de participação saíram emblemáticos conjuntos habitacionais portugueses, feitos por diferentes arquitetos, incluindo o complexo habitacional do Bairro da Bouça, desenhado por Siza.
Generosas áreas livres de acesso público – que serviriam como acesso e zonas de recreação coletiva, similares às vilas das cidades brasileiras – fundamentavam o conceito urbano do conjunto.
Além disso, a solução arquitetônica propunha uma inversão de projetos convencionais de edifícios similares com unidades sobrepostas de dois andares (duplex). Siza propõe escadas ligando o térreo diretamente ao segundo andar, onde está a sala da unidade de baixo. A mesma solução é espelhada verticalmente para a unidade superior e a sala tem acesso pelo terceiro andar, onde há um corredor elevado, uma varanda coletiva.
Assim, o arquiteto conseguiu minimizar interferências sonoras entre as unidades e problemas futuros entre vizinhos, uma vez que os dormitórios, localizados no primeiro e no quarto andares, não recebem ruídos de outras unidades. Além disso, as várias escadas conferiam uma forma arquitetônica única para o conjunto, servindo de arquibancadas voltadas para a rua.
Para Siza, o projeto do Bouça era tanto um exercício político quanto uma possibilidade real de agir sobre a tão criticada distância entre arquitetura moderna e contextos locais específicos. Convergia para esse projeto a chance de explorar os problemas sobre o modernismo internacional colocados nas duas décadas anteriores, tanto por comunidades quanto pelos arquitetos, e disso propor saídas práticas.
Apesar da dedicação de todos os envolvidos, a construção do bairro foi interrompida quando o governo português sofreu, em 1976, uma guinada conservadora. Mesmo assim, o conjunto pôde ser ocupado por alguns moradores, mas parte do terreno permaneceu vazia e as escadas para o acesso dos corredores elevados foram improvisadas com tábuas de madeira. Apenas em 2006, mais de trinta anos após sua concepção, a construção do conjunto foi finalizada.
A experiência no Porto levou Siza a desenvolver habitações sociais em outras cidades. Primeiro, ele projetou o bairro de Schilderswijk, em Haia, nos Países Baixos; depois trabalha em Berlim e Veneza.
Em comum, essas intervenções fora de Portugal mantiveram duas características fundamentais do projeto no Porto: o profundo cuidado com as necessidades e desejos das populações locais e a incorporação no desenho do edifício de elementos tradicionais de cada cidade.
Esses projetos guardam o DNA do lugar onde estão construídos e seria inclusive possível adivinhar a cidade onde ficam apenas ao olhar uma imagem do edifício e identificar os tradicionais tijolos e os telhados em águas holandesas; os blocos maciços alinhados às ruas com generosos pátios internos alemães; a escala e a paleta de cores da cidade histórica italiana.
No projeto de Haia, Siza construiu maquetes em tamanho real para os moradores estudarem as plantas dos apartamentos antes da construção. Logo se verificou a necessidade de os moradores muçulmanos – maioria no bairro – separarem as áreas dos quartos da sala de estar porque, quando homens receberiam visitas, crianças e mulheres ficariam em áreas privadas.
A incômoda questão que expressava diferenças culturais entre os habitantes da região levou Siza a ser pressionado por políticos a fazer duas tipologias diferentes, uma para muçulmanos e outra para os demais moradores. Siza reagiu: “Isso é uma dupla marginalização; é preciso criar uma casa com flexibilidade suficiente para as duas comunidades e não é por decreto que se muda a cultura e os hábitos”. Assim, chegou ao desenho de um porta de correr que dividia o hall de entrada dentro da unidade e permitia a compartimentação da casa em dois núcleos, dependendo do desejo dos moradores.
A precisão da inserção dos prédios nos contextos e a delicadeza na condução dos processos projetuais permitiram, nessas diferentes experiências, aproximar a comunidade de suas próprias habitações, fazendo com que os conjuntos pudessem ser de fato apropriados pelos moradores. Essa postura do arquiteto frente ao projeto agia justamente sobre as insuficiências da arquitetura moderna e abriu novos caminhos para repensar a incomunicabilidade e a artificialidade das intervenções arquitetônicas.