2021, eu te amo
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Nunca fui supersticioso. Lembro que mandingas de Ano Novo me geravam um certo desconforto por virem atreladas a uma expectativa quase sempre abstrata e irreal.
Desde moleque me divirto observando os rituais do dia 31 de Dezembro. Na minha família todo mundo vestia branco, comia lentilha, mastigava sete uvas, embrulhava as sementes numa cédula e carregava aquela fruta cuspida o ano todo na carteira. Acendiam vela na praia, pulavam sete ondas, brindavam o que estava por vir, faziam a contagem regressiva e... oito horas depois a vida continuava a mesma.
O ano seguinte era ótimo para alguns, péssimo para outros, mas 2020 foi uma unanimidade. Independente de partido político, classe social ou religião, a gente concorda que os últimos doze meses foram, no mínimo, um desafio.
Olho para trás com orgulho do nosso poder de adaptação, empreendedorismo e criatividade, mas talvez meu sentimento mais forte seja a gratidão pelos profissionais indispensáveis que permitiram que o mundo continuasse funcionando.
Enquanto o coronavírus dominava o planeta, a gente teve o privilégio de trabalhar da nossa cama, botar o papo em dia via Zoom, assistir a séries na Netflix, fazer playlist no Spotify, praticar meditação no HeadSpace, aprender receitas com a Rita Lobo, investir na jardinagem, malhar da sala e acompanhar notícias sem pôr um pé fora de casa. A gente pedalou bicicletas que não saem do lugar, experimentou pratos novos usando aplicativos de delivery e se manteve emocionalmente conectado via FaceTime. Nosso lar nunca foi tão importante. Do dia para a noite, o escapismo dos bares, boates, cinemas e academias desapareceram.
O valor que uma casa confortável tem nunca mais será questionado.
É claro que ler tantas manchetes trágicas, ficar longe de quem a gente ama, se sentir enclausurado e rezar por uma vacina diariamente foi doído, mas a gente não pode reclamar. Cá estamos.
Médicos, enfermeiras, policiais, professores, funcionários de mercado, motoristas de táxi, entregadores de comida, motoboys, seguranças, porteiros, agricultores, lixeiros e tantos outros heróis foram os responsáveis pela permanência da nossa realidade. Eles, sim, merecem nosso respeito e admiração.
Infelizmente, o sistema no qual a gente vive nem sempre é justo. Sem esses profissionais nada funciona, no entanto, eles raramente são celebrados.
Além de não terem a opção de manter o distanciamento social dentro de um ônibus, elevador ou corredor de hospital, eles acabaram com a incumbência de mostrar para o mundo que o uso de máscaras era mais que "mera frescura" ou "mimimi". Convenhamos que, no meio de uma pandemia global, era de se esperar que pessoas em posições de poder - independente de partido - protegessem a população, entretanto, em alguns casos, a teimosia perante normas de segurança pública se tornou uma maneira de demonstrar devoção ao líder supremo. Essa postura egoísta de repente passou a representar a bandeira do culto. Política não é religião, mas, o coronavírus nos mostrou que inconsequência no topo da pirâmide não custa caro... Custa vidas.
Talvez a faceta mais cruel desse fenômeno tenha sido a politização descarada da maior crise de saúde do último século. O apego a mentiras inconsequentes por mera fome de poder teve várias interpretações, desde a vilanização da máscara e do distanciamento social até a cloroquina disfarçada de tratamento preventivo. Que fique claro: não há tratamento preventivo comprovado ainda. É fantasia.
É óbvio que há um custo emocional gigantesco que não pode ser ignorado. Saúde mental deve ser levada em consideração e milhões de pessoas sofreram - e ainda sofrem - com as consequências do enclausuramento e do constante influxo de más notícias. Com isso dito, ignorar normas de segurança, criticar o lockdown e se recusar a praticar a quarentena, nunca foi uma estratégia inteligente.
Em 2020, vimos o melhor e o pior do ser humano. Chefs renomados alimentando a comunidade sem-teto, universitários preservando a saúde de idosos entregando remédios em suas portas, festas de aniversário virtuais, restaurantes oferecendo refeições gratuitas para o staff de grandes hospitais, aplausos diários a comunidade médica, papos de WhatsApp periódicos com nossos pais e demonstrações de amor incondicional sem que a gente pudesse sequer se abraçar. Por outro lado, temos aqueles que compraram todos os rolos de papel higiênico do supermercado, não resistiram à festa abarrotada no bar da esquina, dançaram até o sol raiar no réveillon (sabendo que aquele ato resultaria em perdas imensuráveis) e, é claro, agora furam a fila da vacina.
É difícil encarar essa ressaca emocional com alguma leveza. Ainda assim, graças a uma comunidade científica incansável, hoje existe uma vacina. Uma não, muitas. A expectativa era que o bendito antídoto anticoronavírus fosse levar pelo menos cinco ou seis anos para ser descoberto. Eu sei, eu sei... a distribuição é lenta, o planejamento - tanto nos EUA quanto no Brasil - é absolutamente desastroso, o negacionismo irracional se espalha como uma pandemia paralela, o COVID-19 ainda mata milhares de pessoas por dia em ambos os países, mas há uma luz no fim do túnel.
Sempre digo que números não fazem juz ao desfalque sentimental que uma tragédia como essa representa. Até hoje, mais de 2 milhões de pessoas já faleceram por COVID-19; 630 mil entre o nosso país e a América. Digerir a matemática desse momento com humanidade e altruísmo é fundamental para que a gente não siga o exemplo dos nossos líderes. Cada algoritmo nessa equação representa uma cadeira vazia na mesa de jantar, o silêncio cruel no fim de tarde e um futuro de memórias roubadas.
Saber que o pior já passou faz bem à alma. Enxergar Nova York aos poucos se reerguendo é um dos grandes prazeres da minha atual rotina. A contagem regressiva para a vacinação dos meus pais é uma constante fonte de ansiedade e de esperança.
É necessário que a gente não jogue fora esse coquetel de emoções. Que em breve a gente incorpore essas lições ao nosso cotidiano dando mais valor ao nosso lar, aos detalhes da nossa casa que nos deram prazer em um momento de total desespero, ao conforto dos ambientes que nos acolheram ao longo dos altos e baixos desse ano, às pessoas que fizeram questão em ligar de vez em quando só para saber como a gente estava, às viagens que não pudemos fazer por doze meses, aos beijos que ficaram no nosso imaginário, à arte que supriu tantas carências, ao valor que essa troca humana tem e à diferença que a expressão de carinho certa faz quando é compartilhada na hora adequada.
Passei meu réveillon quieto no meu apartamento sem mandingas, orações ou lentilha, porém, cheio de esperança e otimismo.
2021, eu te amo.