Uma paisagem de emudecer. Quem visita a Jordânia se surpreende com a beleza do país, principalmente com o cenário desértico no sul. Areia, montanhas esculpidas pelo vento e uma coloração peculiar vermelho-ferrugem. É como chegar num outro planeta. O Wadi Rum é um dos desertos mais bonitos do mundo e hoje o visitaremos juntos.
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Minha estada lá foi marcante. Compartilho um pouco dessa jornada para colorir seu dia e lançar luz sobre esse lugar incrível: o que é e onde fica o Wadi Rum; vivenciando o deserto com os locais; os antigos nabateus e o deserto; a Revolta Árabe e Lawrence da Arábia; o que fazer, como chegar e onde ficar. Continue lendo para descobrir essas respostas e muito mais.
É unânime, o primeiro impacto ao chegar no deserto é de silenciar qualquer um. Uma vastidão que, ao mesmo tempo, se difere e se complementa ao imaginário comum que temos do que é um deserto. Sequer imaginamos que um deserto possa ser deste jeito, mas ao percorrer o olhar imediatamente entendemos que um deserto pode também ser assim.
O que é e onde fica o Wadi Rum?
O Wadi Rum é uma área desértica protegida que reúne patrimônios naturais e culturais, situada no sul da Jordânia, numa região caracterizada por altas montanhas de arenito e vales secos. Essas montanhas são compostas por um tipo específico de arenito, resistente a erosão e rico em ferro, que confere a distinta coloração avermelhada ao deserto. Vales de sedimentos aluviais, areias eólicas e salinas preenchem os espaços entre as montanhas.
A delimitação do Wadi como área protegida se integra a uma paisagem ainda mais extensa, que percorre o sul do país e também áreas da vizinha Arábia Saudita. Sua intrigante topografia segue o curso do afastamento entre duas placas tectônicas: a arábica e a africana.
Esse deserto é produto dos milhares de anos de transformações geológicas. O movimento paralelo entre as placas tectônicas e a contínua erosão trabalham o cenário do Wadi na paisagem que encontramos hoje. Dunas, gargantas, arcos naturais, penhascos e cavernas. Petróglifos, inscrições e vestígios arqueológicos atestam, ao menos, 12.000 anos de ocupação humana e a sua interação com o ambiente.
Visitando o Wadi Rum com calma
Visitar o Wadi Rum foi memorável. É um lugar maravilhoso, com características que o enriquecem ao ser comparado a outros desertos pelo mundo.
Dois aspectos fundamentais para que essa passagem tenha se tornado inesquecível foram realizar a viagem no nosso tempo e ter a liberdade de traçar nossa rota com o envolvimento dos locais. Aproveitamos os dias com calma, contemplando algumas vontades como: conhecer locais, dormir em lugares diferentes e explorar partes do deserto por conta própria.
O desenvolvimento da infraestrutura para o turismo na região acompanhou o crescimento da popularidade do destino. Como resultado, ao mesmo tempo que facilitou o acesso ao local, acabou formatando serviços que oferecem soluções rápidas e padronizadas para a maioria dos turistas. Num contexto geral, essas comodidades podem gerar, ao mesmo tempo, maior facilidade de acesso e menos pensamento crítico e responsabilidade por parte de quem frequenta o deserto. A maior parte dos turistas opta por dormir de uma a duas noites em algum acampamento, ou ainda, faz um passeio ao Wadi de um dia partindo de Petra ou Ácaba. Escolhemos nos demorarmos mais, ficando cinco dias e quatro noites.
Quanto à formatação dos passeios como serviço, a maioria deles são realizados em picapes, com os turistas na caçamba durante quatro, seis ou até oito horas. O custo por pessoa acaba sendo proporcional ao número de integrantes. A parte limitante é o tempo dedicado para realizar as atividades e a quantidade de carros que chegam ao mesmo tempo para verem e fotografarem os mesmos lugares.
Como alternativa, além dos mencionados passeios de carro, é possível contratar motoristas para realizar passeios privados, caminhadas pelo deserto com duração de diversos dias e programações culturais. Acredito ser um caminho mais aconselhável para quem busca se conectar com os locais. Foi o nosso caso e foi a nossa escolha.
Escolhemos passear com o Aziz. Quando ele nos perguntou se queríamos visitar algum lugar específico, não tínhamos nenhum local em mente, apenas uma vontade de como gostaríamos de nos sentir durante o dia. Dissemos que adoraríamos visitar lugares bonitos, que eles gostavam de ir e que pudéssemos ficar sem muita gente por perto. Assim como um amigo que leva os seus amigos para passear por seus lugares favoritos. Além disso, tínhamos um desejo específico e sem cobranças. Um anseio que se condicionava à magia da causalidade. Queríamos conhecer alguém local no deserto caso nossos caminhos se cruzassem.
O sol brilhava quando subimos na caçamba e notamos que havia mais alguém no banco do carona. Era Zaid, seu irmão mais novo. Aziz o introduziu ao mundo do turismo como ofício e passava a ele, em pequenas doses, a responsabilidade do porvir. O turismo ali é um setor vital, pois é uma atividade com movimento frequente e boa rentabilidade dentro de um cenário econômico escasso de oportunidades. Trabalhar com ou para o turismo muitas vezes acaba sendo a melhor, ou única, escolha de trabalho para quem fica na vila.
Partimos em direção ao deserto.
As mãos firmes seguravam a barra de ferro enquanto sacolejavamos na caçamba da picape em direção a algum lugar em meio à imensidão. Ficamos perplexos com a beleza do lugar durante esses deslocamentos. Nunca havíamos visitado um lugar desértico tão bonito como o Wadi Rum. Reforço e complemento as palavras que abrem o artigo: é uma paisagem de emudecer e que nos deixa em constante estado contemplativo.
Esses momentos de trânsito eram intercalados com paradas em lugares com afeto para Aziz e Zaid. Ficamos felizes com as escolhas e em escutar suas próprias histórias que se conectam aos lugares. Conversamos sobre diversos assuntos. Família, passatempos, gosto musical, viver de turismo no deserto, estudar e avaliar as possibilidades de se mudar para outras cidades, ter parentes que ainda viviam no deserto durante algumas épocas do ano, esse último assunto me despertou bastante curiosidade e a possibilidade de realizar um desejo. Perguntei a Aziz se ele quisesse e pudesse nos levar para conhecer algum parente seu no deserto. Aziz sorriu como quem concorda pensar na ideia. Ficou com isso na cabeça.
Entre percursos e paradas no deserto, partilho uma dessas caminhadas que nos foi muito marcante. Aziz conversou com o irmão e nos pediu que o seguíssemos numa caminhada por um cânion que eles gostam muito. Zaid não falava nada de inglês, nós tampouco conseguimos sustentar uma conversa em árabe com ele. Ainda assim, estávamos confortáveis um com a presença do outro. À frente, com seu robe marrom-ocre, ele nos conduzia. Por vezes, olhava para trás e sorria na busca, em nossos olhares, da confirmação se estávamos bem e o acompanhando. Nossa comunicação acontecia através dos sorrisos. Em meio ao silêncio, escutamos o som da morna e tímida brisa que acariciava a areia e do som ritmado dos passos que faziam a areia cantar.
Ao final do cânion, Aziz nos esperava com um sorriso de confirmação. Coisas boas aconteceriam. Iríamos conhecer alguns de seus parentes.
Mais alguns quilômetros na caçamba e nos aproximamos dos pés de uma montanha. Com um desnível que remetia a um leito seco, avistamos, então, uma tenda, bodes e um dromedário. Awad, seu tio, nos saudou com um aceno de cabeça e um cigarro entre os dedos. Aziz comentou que durante o inverno alguns de seus familiares se instalam no deserto com seus animais para desfrutarem da atmosfera mais agradável e do silêncio. Essa é uma prática comum entre os locais, principalmente entre o final e o começo do ano, que coincide com o inverno. De fato, vimos alguns locais com tendas simples e também passeando com seus animais em busca de arbustos para pasto.
Fomos convidados para conhecer a tenda da sua família. Dentro encontramos sua avó e mais alguns parentes. Eles nos convidaram para um chá. Seu tio aproveitou para mostrar e tocar a rababa, um instrumento de corda. Depois me ofereceu para experimentar. Tentei tocar. Arranquei algumas notas murchas e sofridas, além de muitas risadas. Rimos todos juntos. Ficamos mais um pouco e seguimos.
Para finalizar o dia paramos o carro numa área envolta por montanhas no encontro das areias vermelha com branca. Aziz acendeu a fogueira que nos manteve aquecidos enquanto os ventos do entardecer anunciavam que, logo mais, o céu se tingiria de laranja. Os quatro, o silêncio, o estalar dos gravetos na fogueira e a água fervendo no bule. Chá com sálvia.
Que dia especial.
Wadi Rum e os nabateus
O Wadi Rum fica próximo à divisa entre o atual sul da Jordânia e noroeste da Arábia Saudita. Geograficamente fica também perto dos atuais estados de Israel, Palestina e Egito (península de Sinai). Essa área foi percorrida e habitada por diversos povos na antiguidade, com destaque aos nabateus, que na região estabeleceram seu reino com capital em Petra, na atual Jordânia.
Outra cidade importante dentro desse reinado foi Hegra, hoje na atual Arábia Saudita. Entre ambas havia caminhos que percorriam o deserto e passavam pelo Wadi Rum conectando as cidades à uma extensa rede de outras rotas. Muitas especiarias e variados produtos cruzaram essas areias, inclusive incenso trazido de longe pelas rotas que ligavam o sul do Omã e Iêmen ao resto do Oriente Médio e Europa. Parte do sucesso econômico dos nabateus se deu pelo comércio de incenso e mirra entre Ocidente e Oriente.
Procurar esses vestígios faz parte da rica experiência de vivenciar o Wadi Rum.
História: Revolta Árabe e Lawrence da Arábia
Ainda sobre tanta história que passou pelo deserto, Lawrence é um nome recorrente para quem visita o Wadi. Ele foi um personagem real que percorreu essa imensidão e seu nome é associado a muitos pontos no deserto. Ele desempenhou um papel importante nesse capítulo da história recente, que acabou dando origem ao desenho das fronteiras que demarcam parte do Oriente Médio.
Contudo, o uso do seu nome é muitas vezes em vão e puramente comercial. Pouco, ou nada, tem a ver com o aprofundamento desse importante fato histórico. A citação acaba sendo vazia e relacionada a locações de filmes e a pontos sem contextualização. Infelizmente, isso ofusca a real compreensão que poderia ser dada ao capítulo histórico e também a atenção ao passado das caravanas, dos nabateus, dos romanos e das rota de conexão entre Oriente e Ocidente.
De maneira breve e introdutória compartilho um pouco sobre Lawrence.
O Império Otomano foi um dos mais importantes da história e em sua maior extensão dominou partes do norte africano, entornos do Mar Vermelho, trechos da península arábica, toda a península anatoliana, também partes da Mesopotâmia, dos Bálcãs e da Eurásia. Um território imenso e etnicamente diverso. Com o passar dos séculos, administrar tanta complexidade foi se tornando impraticável e, consequentemente, seu destino foi a ruína.
Logo antes do último período de sua fragmentação entre o pré e pós Primeira Guerra mundial, áreas do Oriente Médio (atual Hejaz, na Arábia Saudita, Jordânia, Palestina, Israel, Líbano, Síria, Iraque e Turquia) integravam o enferrujado império. Insatisfeitas, essas regiões buscavam a sua independência do Império e, juntas, almejavam formar um soberano estado comum árabe.
Inimigos de guerra e ciente da fragilidade do império otomano, o Reino Unido encontrou nessa insatisfação e desejo de independência um calcanhar de Aquiles para os otomanos. Uma real possibilidade de acelerar o processo de dissolução do império e divisão da atenção em mais uma frente de combate. Os ingleses enviaram Lawrence para Hejaz. Como admirador da cultura árabe, ele conseguiu se infiltrar e se aproximar de Faiçal, um dos líderes da revolta árabe. Seus conhecimentos sobre a geografia local e o exército turco, somados aos ideais de soberania da nação árabe, logo fizeram de Lawrence o conselheiro logístico do movimento. Grande articulador, ele conseguiu reverter a ocupação do território árabe, impedindo a retaliação turca, através de ações de guerrilha que culminaram com a tomada de Damasco (capital da Síria).
Em 1919 tornou-se conselheiro da delegação árabe na Conferência de Paz de Paris, contudo, viu as antigas promessas de reconhecimento da soberania desse embrião de um estado pan-árabe serem desfeitas com a divisão dos territórios árabes do antigo Império Otomano sob os mandatos da França (Síria e Líbano) e do Reino Unido (Palestina e Mesopotâmia).
A traição da coroa inglesa fez com que esse grande território fosse partilhado entre duas das potências vencedoras da primeira grande guerra: França e Reino Unido. Posteriormente suas decisões internas desenharam as fronteiras que quiseram e como bem quiseram, inclusive validando a fragmentação da Palestina entre Israel, Cisjordânia e Gaza.
O que fazer no Wadi Rum
À parte das atividades que podemos realizar em qualquer deserto do mundo, destaco a beleza de se conectar com os locais e aprender com eles. Acima compartilhei nossa aventura com o Aziz a fim de servir como uma sugestão.
Além disso, a geologia e os recortes históricos são outros pontos de interesse muito ricos a serem aprofundados por quem visita o Wadi Rum.
Como chegar no Wadi Rum?
A Jordânia é um país compacto e o turismo na região está bem desenvolvido. Há suficiente estrutura para se planejar uma viagem por conta própria com facilidade e alguns cuidados.
Com boa conectividade de voos e igualmente bom relacionamento com seus vizinhos, há dois principais aeroportos de entrada no país, o de Amã e o de Ácaba. Chegar por Amã acaba sendo mais barato por ser a capital e oferecer maior frequência de voos com preços competitivos. De Amã para o Wadi Rum é necessário percorrer a estrada de carro, transfer ou ônibus.
De carro, o trajeto mais rápido do aeroporto de Amã até o estacionamento da vila de Wadi Rum leva três horas e trinta minutos pela rodovia 15. A estrada está em boas condições, contudo, apresenta trechos em obra, demandando maior atenção do condutor. Outra opção é chegar ao aeroporto de Ácaba, ao sul. De lá até o estacionamento no deserto o trajeto tem duração de uma hora e vinte minutos. Como alternativa para quem chega por Ácaba é possível contratar um táxi.
De ônibus, a viação Jett opera rotas conectando Ácaba, Wadi Rum, Petra e Amã.
O ponto de chegada comum para qualquer pessoa que visita o Wadi Rum é a vila de Wadi Rum. Ali os turistas estacionam seus carros alugados ou chegam de ônibus/taxi/transfer. É na vila o ponto de encontro entre turistas e locais. Os motoristas de agências e acampamentos fazem o transporte dos turistas entre a vila e as hospedagens, ou apenas passeios de um dia.
Para quem passa a noite no deserto é fundamental chegar com a hospedagem previamente contratada e o contato do transfer (da vila para a hospedagem) já combinado.
Onde ficar no Wadi Rum?
O ponto de entrada do Wadi Rum fica na vila, que leva o mesmo nome, ao norte. A vastidão do deserto somada às distâncias percorridas entre hospedagem e atrações requer um constante deslocamento de carro com tração nas quatro rodas. Por ser uma área protegida, o turista não pode dirigir livremente pelo deserto sem uma autorização prévia. Salvo autorização, apenas locais podem prestar serviços e dirigir.
A sugestão é escolher um acampamento no deserto que vá de encontro às necessidades e disponibilidades do turista. Há opções para todos os bolsos e gostos.
Compartilho algumas valiosas dicas:
Há turistas que se hospedam em Ácaba para otimizar o roteiro e fazem da ida ao Wadi Rum um passeio de um dia. Um bate-volta de três horas de deslocamento mais o passeio de meia diária. Passam na estrada quase a metade da duração do passeio e perdem a magia de dormir alguns dias no deserto. Imagina cruzar oceanos para chegar num dos desertos mais bonitos do mundo e durante o dia perceber que dedicou pouquíssimo tempo para viver uma experiência incrível?
Muita gente não reserva a estadia antes e deixa para realizar a reserva assim que chega na vila, tendo que se contentar com o preço ofertado na hora sem ter referências para negociar ou sequer verificar a qualidade da hospedagem através de imagens e avaliações. Ao priorizar baixos preços, muitos optam por alojamentos na vila sem levar em consideração o deslocamento durante os passeios. O problema de pernoitar na vila, além da falta total de ambiência e de charme, é que a localização ao norte da entrada da área protegida faz com que o turista precise percorrer uma distância considerável apenas para entrar e sair do deserto.
O acesso à internet é limitado. Há sinal constante apenas na vila. Isso significa que para conversar com os acampamentos os locais costumam responder às suas mensagens assim que realizam um transfer chegando na vila ou ao voltar para casa à noite. A comunicação não é de respostas imediatas. Não deixe para planejar de última hora. Outro ponto importante e que também depende da internet é que as saídas para passeios e o fluxo dos transfers para os acampamentos acabam acontecendo em horários mais convenientes para as agências e acampamentos. É necessário deixar o acampamento informado sobre o dia e horário da sua chegada e ainda que os avise uma hora antes de chegar na vila para que possam instruir o motorista a buscar o turista e o levar para o acampamento.
Não é porque é deserto que o clima está sempre seco e perfeito. Pode chover e inundar, ventar forte gerando tempestades de areia e até mesmo nevar no inverno. Viagens ao ar livre devem ser planejadas com dias extras para contornar eventuais imprevistos.
Esses são alguns pontos importantes a serem considerados. O cuidado com a logística é fundamental para desfrutar ao máximo sua estada no Wadi Rum.