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Wabi sabi, enxergando beleza na imperfeição e na transitoriedade

folhas do outono japonês

A beleza das folhas de outono costuma ser associada e lembrada pelos japoneses como um exemplo de manifestação do conceito wabi sabi. Na foto, um komorebi, momento em que observamos a luz solar filtrada através das folhas (Foto: Ale Disaro)

Ao buscar inspiração em outras culturas, podemos desenvolver novas ferramentas para navegar pela vida ao incorporá-las ao nosso repertório. Estar fora do que nos é familiar pode nos proporcionar novas possibilidades ao entrarmos em contato com maneiras diferentes de interpretar o que nos cerca. A sabedoria japonesa wabi sabi pode nos auxiliar, gerando mais contentamento na vida em tempos de comparação desmedida, ansiedade, demanda contínua por aumento de produtividade e excesso de consumo.

Entardecer em um templo (Foto: Ale Disaro)

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Esse conceito japonês pode ser aplicado imediatamente após a leitura desta coluna em todas as esferas da vida.

Há muito para ser aprofundado sobre o assunto, por isso, optei por focar na introdução do conceito com um viés prático. Procuro apresentá-lo com o intuito de oferecer novas lentes para que você possa usá-las e, no seu ritmo, aprofundar-se caso tenha interesse. Esta partilha se baseia em um livro que li ao me preparar para a minha segunda visita ao Japão: Wabi sabi, de Beth Kempton. Recomendo a leitura.

O wabi sabi incentiva a fazer o seu melhor sem adoecer na busca por objetivos imbuídos de um ideal de perfeição. O conceito japonês nos encaminha para uma ideia de relaxamento, desaceleração, apreciação da vida, percepção de que a beleza pode ser encontrada nos lugares mais improváveis, além da aceitação do caráter provisório de tudo e da experimentação da vida com todos os sentidos. Ele não se propõe a resolver os seus problemas, mas pode ser uma alternativa ao lidar com eles, sugerindo uma maneira diferente de enxergar a vida. Podemos aprender a nos contentar com menos de um jeito que parece mais, o que não significa acomodar-se ou abrir mão dos seus sonhos e ambições. É um convite a atentar-se à possibilidade de reparar na beleza que já existe durante os seus processos.

Comecemos com a definição dos termos, separadamente, antes de juntá-los na sabedoria wabi sabi.

Além dos materiais naturais empregados na construção da casa, é lindo ver o protagonismo da natureza como elemento fundamental e em como é feita a integração entre o jardim e moradia
Além dos materiais naturais empregados na construção da casa, é lindo ver o protagonismo da natureza como elemento fundamental e em como é feita a integração entre o jardim e moradia, que por vezes se fundem (Foto: Ale Disaro)

Wabi

Originalmente, a palavra significava simplicidade, pobreza ou aspecto empobrecido. Com o passar do tempo, seu significado se transformou, contemplando gosto suave, apreço pelo simples e sereno, rústico e refinamento austero. A beleza do wabi está presente de forma subentendida dentro da escuridão. Como escreveu o pregador budista Kenko há sete séculos: “Será que devemos olhar a primavera somente no florescer total e admirar a lua apenas quando o céu está claro e sem nuvens?” A beleza não se torna evidente só no que é alegre ou óbvio. Há muita beleza contida na possibilidade, no potencial e na espera.

Wabi implica uma quietude, uma aceitação da realidade e a percepção que vem com isso. É uma mentalidade profundamente conectada à compreensão de que nossas verdadeiras necessidades são simples, além de prezar a humildade e a gratidão pela beleza que já existe na situação em que nos encontramos.

Compreender o termo nos permite perceber que, não importa qual seja a nossa situação, sempre há beleza em algum lugar.

musgo e flores nos musgos
O musgo é uma planta muito apreciada no Japão e presente em diversos lugares, inclusive em casas, templos e até no hino do país. Além dos musgos, flores são igualmente valorizadas conferindo beleza e demarcando a passagem das estações. Uma flor associada à transição do inverno para a primavera é a camélia. Em alguns templos com musgos conseguimos testemunhar o lindo encontro e contraste do verde do musgo com a vivacidade das camélias caídas sobre ele. Um momento único que marca o final do inverno japonês. (Foto: Ale Disaro)

Sabi

A palavra sabi significa visual antigo e simplicidade elegante. Ao longo do tempo, a palavra evoluiu e também passou a comunicar a beleza que surge com a passagem do tempo, a pátina da idade e os sinais da antiguidade. Sabi é uma condição criada pelo tempo, e não pela mão humana. O conceito se inclina para a elegância refinada da idade. É a beleza revelada no processo de uso e decadência.

Embora o conceito seja melhor exemplificado pela passagem do tempo manifestada fisicamente nos objetos, o significado mais profundo indica o que se esconde por baixo da superfície. É uma representação da forma como tudo evolui e perece, podendo evocar uma resposta emocional em nós, geralmente com toques de tristeza, enquanto refletimos sobre a efemeridade da vida.

A beleza do sabi remete à conexão que temos com o passado, ao ciclo natural da vida e à nossa mortalidade.

fachada de madeira no japão
Fachada de uma casa feita de madeira, no interior do Japão. As marcas da passagem do tempo são apreciadas e valorizadas como beleza (Foto: Ale Disaro)

Wabi sabi

A autora descreve bem este encontro entre ambos: o coração wabi reconhece a beleza sabi, e os dois caminham juntos.

Se você pedir a um japonês que lhe explique o que é wabi sabi, ele provavelmente saberá do que se trata, mas terá dificuldade para formular uma definição. Isso não significa que ele não entenda, e sim que a compreensão é natural e intuitiva.

Wabi sabi vai além da beleza plástica e palpável de um objeto ou ambiente. Sentimos wabi sabi quando entramos em contato com a essência da beleza autêntica, despretensiosa e imperfeita. É uma sensação profundamente conectada ao tipo de beleza que nos lembra o caráter passageiro da vida. É uma aceitação e uma apreciação da natureza inconstante, imperfeita e incompleta de todas as coisas. É o reconhecimento do presente que é a vida simples, lenta e natural, que se transforma, muda, envelhece e finda.

Compreender e sentir wabi sabi pode nos ensinar a abrir mão da perfeição e a nos aceitar como somos. Esses preceitos nos lembram de procurar a beleza no cotidiano, permitir que ela nos mova e, ao fazer isso, a sentir gratidão pela vida em si.

interior de casa tradicional no japao
Interior de uma casa tradicional. Uma casa inspirada no wabi sabi é vivida, amada e nunca completa. Carrega marcas, memórias e não, necessariamente, está em ordem ou arrumada (Foto: Ale Disaro)

O wabi sabi é um lembrete de que simplicidade, beleza e quietude podem nos fazer mergulhar totalmente em um instante, no meio de qualquer tarefa. Tudo é transitório, incompleto e imperfeito, incluindo a vida em si. Portanto, a perfeição é impossível e a imperfeição é o estado natural de todas as coisas.

Wabi sabi é um convite a prestarmos mais atenção em como vemos e o que sentimos e não apenas o que vemos.

Exemplos de situações que nos fazem sentir wabi sabi

Antes de citar exemplos japoneses, compartilho alguns exemplos mais próximos a nós.

Sinto o wabi sabi toda vez que contemplo os galhos craquelados e marcados da jabuticabeira. Toda vez que os vejo, sei que logo mais ali brotarão flores que, na sequência, se transformarão em jabuticabas e, em poucos dias, muitos passarinhos virão comê-las. Em seguida, os mesmos troncos voltarão a ficar sem flores ou frutos e com novas marcas. Por vezes, me pego olhando para esses galhos e imaginando todo o processo, enxergando beleza na ausência e na espera, e sentindo gratidão pelo que está por vir. Uma pausa que ajuda a acalmar os pensamentos.

Bala de doce de leite no tacho embalada em palha seca, pamonha na folha do milho, doce de buriti embalado na caixinha feita com a madeira do próprio buritizeiro, cachaça embalada na palha, tacacá na cuia, farinha de Bragança embalada na folha e palha e o peixe assado na folha de bananeira. Esse tipo de embalagem natural é irregular e única, traz apelo visual, tátil, olfativo e gustativo quando em contato direto com o alimento.

alimentos embalados em folhas secas
No Japão é muito comum encontrar alimentos e presentes embalados em folhas secas. Na foto, embalagens de sushi de cavala embalados em folhas secas (Foto: Ale Disaro)

O wabi sabi é um conceito intimamente conectado à natureza. O Japão é um país que vivencia as estações do ano de forma bem demarcada. E dentro das próprias estações há eventos como a época das chuvas, o cantar das cigarras e o florescer de vários tipos de flores que ajudam a indicar os meses. Na cultura e na arte, a percepção da passagem do ano é interpretada e expressa através da ausência de algo que estava aqui e não está mais; e a ideia de algo que é, mas logo não será mais.

Visitei o país pela primeira vez durante o outono. Lembro de ter visto caquis pendurados e em processo de desidratação espalhados por todos os lugares. Testemunhei a mudança das cores das folhas das árvores, que foram do verde-claro que brotaram na primavera e escureceram durante os meses do verão para o amarelo que se alaranjou, avermelhou e se tornou marrom antes de cair. Uma mudança percebida e sentida tanto na escala de uma única árvore quanto em um horizonte distante com montanhas, florestas e rios. Impermanência e transitoriedade que se manifestam através da profusão de cores e nos lembram da finitude de tudo e da renovação dos ciclos.

caquis desidratados
Caquis desidratados e pendurados nas janelas emoldurados pelas folhas avermelhadas do bôrdo japonês, um registro do outono (Foto: Ale Disaro)

Um dia fui passear pelas ruas de Arashiyama, em Quioto. Ao final da caminhada, cheguei a uma casa de chá que preservava a arquitetura da era Edo. Lá, pedi uma tigela de matcha e mochi. Uma cerâmica irregular foi escolhida para os mochi. Ao lado, um pequeno punhado de açúcar mascavo e uma folha de árvore para ser usada como colher junto a um galho a ser usado como garfo. Imediatamente, lembrei-me de uma vivência com uma ceramista nipo-brasileira que me contou que quando pequena, na chácara, um dia foi comer jaca com a família mas eles se viram sem talheres. Sua avó, japonesa, foi ao quintal e recolheu grandes folhas e diversos galhos. Após higienizá-los com água, as folhas foram postas no chão e usadas como pratos e os galhos se transformaram em hashi.

mochi
Mochi (doce de arroz glutinoso) servido com açúcar mascavo. Repare na folha a ser usada como colher e no galho a ser usado como garfo (Foto: Ale Disaro)

Existe uma palavra linda em japonês para se referir ao efeito da luz solar filtrada pelas folhas das árvores: komorebi. Esses padrões mudam de forma a cada segundo. Essas sombras projetadas e em movimento tocam o chão, encostam-se em templos e acariciam nossas mãos. Cada momento é único e finito. A foto que ilustra essa coluna é um desses momentos.

Há um jeito lindo de sinalizar que um lugar não pode ser acessado em japonês. Seja um caminho a não ser percorrido, seja uma área para não se sentar, os japoneses usam uma pedra com uma corda amarrada para indicar que a partir daquele ponto o local está fora do nosso alcance. Mimetizado à natureza é um código cultural amplamente compreendido.

pedra com corda amarrado
Pedra com uma corda amarrada indicando que daquele ponto em diante não é autorizada a passagem (Foto: Ale Disaro)

Outro exemplo lindo, extraído diretamente do livro, é quando a autora descreve ter conhecido o trabalho de uma ceramista por quem se encantou pelas peças. Um dia, ela perguntou à artista sobre as suas escolhas estéticas e a artista respondeu que, além dos materiais, formas e cores a serem apreciadas por sua plasticidade, a artista acredita que o cliente completa a beleza de cada objeto ao usá-lo. Ela, propositalmente, crê que a peça é vendida incompleta, assumindo que as futuras memórias e o envelhecimento irão completar a cerâmica.

A beleza japonesa é descoberta pela vivência, não apenas pelo olhar.

Wabi sabi como estética

Para além do conceito, grande parte da camada palpável que facilita a conexão com a parte emotiva do wabi sabi acabou sendo retirada do contexto, esvaziada de significado, agrupada e interpretada como uma estética wabissabiana, como adjetiva a autora. O processo de globalização, as diversas tentativas de traduzir o conceito sob lentes não japonesas e o consumo excessivo acabaram contribuindo para a mercantilização do wabi sabi como produto.

No Ocidente, essa tentativa de interpretação do conceito passou a ser equivocadamente associada a uma “filosofia oriental” sobre a qual, na verdade, pouco se sabe mas pega bem citar e é, primeiramente, reconhecida através da materialização em objetos que seguem uma estética específica do que se acredita ser japonês, fixando-se em formas orgânicas e materiais naturais. Consequentemente, por se basear na aparência, o termo é difundido como a manifestação dessa estética orientalista em produtos. Enquanto isso, a sensação que experimentamos através de todo e qualquer objeto ou vivências, que é o real cerne do conceito, passa a ser secundária, quando lembrada, à beleza plástica.

casa de chá artesanal
Casa de chá com ares contemporâneos e instrumentos artesanais feitos com materiais naturais. O design limpo e minimalista acalma a mente e direciona a atenção para o momento presente de apreciar o chá e reparar nas tigelas e utensílios (Foto: Ale Disaro)

Não é um problema gostar da estética wabissabiana durante a jornada de compreensão do wabi sabi. Entretanto, é importante aprender que seu real significado reside além da superfície. Esses objetos são meios que nos ajudam a lembrar da natureza efêmera e imperfeita da vida, não um fim desprovido de sentido. Isso nos leva, também, a aceitar que a estética do objeto não precisa, necessariamente, ser associada ao Japão; afinal, essa sabedoria lança luz sobre o sentimento despertado, e não sobre o objeto.

Reconhecer e sentir wabi sabi é algo que podemos aprender. Lembre-se: não é uma questão do que se vê, mas como se vê.

E você, já sentiu wabi sabi? O que desperta em você o sentimento de wabi sabi? Compartilhe nos comentários.

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