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VIVA O BENIN!

arquitetura Benin

Mesquita em Porto Novo, capital do Benin (Fonte: Tatewaki Nio (Bolsa de Fotografia Zum/IMS)

No dia 30 de julho participamos de uma festa extraordinária, daquelas que faltam palavras pra descrever.  O convite, que veio alguns dias antes, chegou com a seguinte mensagem:

“Meninas como estão? Espero que estejam bem! Vamos fazer uma festa no sábado na minha casa em comemoração do dia de independência do Benim. Aí quero convidar vcs pra participarem.”   

A mensagem era de Abiola Akandé Yayi, nosso amigo. Arquiteto que reside aqui no Brasil há bons anos, um beninense já bastante mineiro, por isso não estranhe se ele terminar algumas frases com “uai”, assim como a gente faz aqui em Minas. O motivo da festa: os 62 anos de independência da República do Benin.

Abiola Akandé Yayi
Nosso amigo Abiola Akandé Yayi

Ao longo de todos esses anos temos aprendido muito com a amizade de Abiola. Nossas conversas, se tratando de três arquitetos, sempre perpassam pelo universo da arquitetura.

Na festa, nós estávamos em quatro brasileiros, os demais eram de Moçambique, Benin, Gana e outros países de África. Há tempos não nos divertíamos daquela maneira, com tanto acolhimento, sorrisos, alegria genuína, muita dança, diferente do que enfrentávamos nos últimos anos. Estávamos realmente felizes e em paz!

Depois de um jantar maravilhoso, típico do Benin, Abiola agradeceu a presença de todos e reforçou a importância de celebrarmos nossos ancestrais enquanto pessoas que vieram antes de nós e fizeram diferença para a nossa história. Coincidência ou não, dias atrás o próprio Abiola em suas redes sociais nos relembrou sobre o entendimento do que é ser ancestral na visão africana:

Um antepassado que marcou seu tempo, com valores e atos valiosos. Ou seja, mais do que alguém que veio antes de nós, alguém que fez a diferença.

A gente tem plena consciência da força dessa amizade e do que esse reencontro representa nas nossas vidas.  Mal sabíamos que essa festa também nos traria uma série de reflexões posteriores.

Qual nosso lugar na história? O que sabemos sobre nossos ancestrais? Quais mudanças carregamos conosco?

É sobre tudo isso que falaremos com vocês.

A formação histórica do Brasil é marcada pela escravidão, o capítulo mais longo e vergonhoso da nossa história. Somente entre os séculos 16 e 19 mais de 4 milhões de pessoas foram trazidas à força de África, dominadas por uma minoria branca que justificava essa condição através de ideais religiosos e racistas que perpetuam até os dias atuais.

As principais rotas dos navios negreiros foram:  Guiné, no século 16; Congo e Angola, no século 17;  Costa da Mina, região do golfo do Benin e Nigéria, no século 18,  Angola e Moçambique nos séculos 18 e 19. Mesmo após a proibição do tráfico de africanos, em 1850, ainda chegaram pessoas de diversas regiões de África, predominando a rota de Angola e Moçambique.

Os que sobreviviam à viagem ao chegar ao Brasil eram separados de seus grupos culturais e misturados para que não houvesse qualquer tipo de comunicação entre eles. Após quase quatro séculos de tráfico de pessoas, a população residente no Brasil era majoritariamente negra e, segundo Censo demográfico de 1872, representava 60% da sociedade.

Durante séculos, os invasores europeus basearam seu modelo econômico na escravidão. Muitas estruturas foram construídas em África para dar suporte à atividade: prisões, armazens de pessoas, fortalezas e instrumentos de tortura. A arquitetura deixa registros palpáveis, algumas construções ainda estão de pé, sendo lembranças concretas deste passado ainda recente.

Enquanto espaços de memória, as portas do não-retorno são especialmente tocantes, símbolo da despedida e da certeza de não voltar para casa. Elas estão presentes em alguns países africanos no local de embarque da última viagem dos escravizados, a última visão de África. A Porta do Não-Retorno em Ouidah no Benin é o ponto final da “Rota do Escravo", memorial que atravessa diversos sítios históricos, inaugurado em 1995 pela Unesco.

Porta do Não-Retorno em Benin
Porta do Não-Retorno, monumento erguido em Ouidah, no Benin (Fonte: Getty Images) 

E é exatamente aqui que nossos caminhos com Abiola se encontram, mais uma vez.

Não é de hoje nosso desejo em conhecer o Benin, mais especificamente a região do Golfo, marcada pelo retorno dos escravizados do Brasil, dos estados de Pernambuco e Bahia, para África. Uma história que poucos brasileiros conhecem.

Por conta das revoltas de escravizados no Brasil na década de 1830, especialmente após a Revolta dos Malês, cerca de 7 mil pessoas retornam ao continente africano, principalmente para Benin e Nigéria: pessoas deportadas, condenadas à expulsão do país e libertos africanos que foram pressionados com a repressão que se instaurou no país no cenário pós rebelião.

O continente africano é composto por 54 países e sete países independentes, Benin e Nigéria estão na parte ocidental e fazem fronteira com Togo, Burkina Faso, Níger e Gana. Benin é um dos menores países do continente, com uma população de aproximadamente 12 milhões de habitantes (2020), enquanto Nigéria abriga cerca de 210 milhões (2020).

São conhecidos como agudás os africanos e seus descendentes que retornaram para essa região e não eram mais reconhecidos como gente local, se identificando coletivamente por sua relação com o Brasil. De origens diversas, esses grupos se organizaram a partir das experiências vividas aqui. Os laços, afetos, práticas culturais e aprendizados construídos na diáspora se tornaram parte da história desses indivíduos. 

Mulheres da comunidade brasileira de Lagos e mulheres iorubás
Mulheres da comunidade brasileira de Lagos e mulheres iorubás da mesma época (Fonte: Imagem divulgação: Da senzala ao sobrado, p. 34-35)

Construindo sua identidade como grupo a partir dessa vivência afro-brasileira comum, mantiveram elementos culturais como o catolicismo, o uso do Português, o calendário festivo religioso, o carnaval e o Bumba Meu Boi. Costumes que foram passados de geração para geração e ainda seguem presentes, embora o idioma tenha sido abandonado durante a colonização francesa.

A história dos agudás é também a história da arquitetura brasileira em território africano. A população que retornou tinha conhecimento de marcenaria e carpintaria e foi responsável pela construção de diversas edificações carregadas de características brasileiras, dentre elas a Grande Mesquita de Porto Novo, com uma fachada que lembra uma construção barroca brasileira.

arquitetura Benin
Mesquita em Porto Novo, capital do Benin (Fonte: Tatewaki Nio (Bolsa de Fotografia Zum/IMS)

Construídos em alvenaria de tijolos, sobrados e casas do século 19 ficaram conhecidos pelo estilo brasileiro e, além de modificarem a paisagem de cidades do Benin e da Nigéria, impactaram o modo de construir da sociedade local.  Inseridas num novo contexto, essas construções dividiam espaço com os coletivos de casas térreas tradicionalmente construídas em adobe com pátio interno, conhecidas como compounds ou agbo ilê.

À esquerda a cidade de Ibadan, impactada pelos sobrados e, à direita, a cidade de Egbeti com construções tradicionais dos compounds (Fonte: Imagem divulgação: Da senzala ao sobrado, p. 80-81)
Residência Agudá em Benin
Residência Agudá - 31 de janeiro de 1996 - Agué, Benin (Fonte: Acervo Agudás / Milton Guran / LABHOI/UFF)
Villa A. Carlos, quarteirão Dègue - 31 de janeiro de 1996 - Porto Novo, Benin (Fonte: Acervo Agudás / Milton Guran / LABHOI/UFF)
Mobiliário feito por marceneiros afro-brasileiros
Mobiliário feito por marceneiros afro-brasileiros, provavelmente no século XIX - janeiro de 1996 - Porto Novo, Benim (Fonte: Acervo Agudás / Milton Guran / LABHOI/UFF)
Residência Agudá
Residência Agudá - 2010 - Lomé, Togo (Fonte: Acervo Agudás / Milton Guran / LABHOI/UFF)
Construção em Porto Novo, Benin
Construção em Porto Novo, Benin (Fonte: Tatewaki Nio (Bolsa de Fotografia Zum/IMS)
Construção em Ilexá, Nigéria
Construção em Ilexá, Nigéria (Fonte: Tatewaki Nio (Bolsa de Fotografia Zum/IMS)
Construção em Porto Novo, Benin (Fonte: Tatewaki Nio (Bolsa de Fotografia Zum/IMS)
Construção em Abeocutá, Nigéria
Construção em Abeocutá, Nigéria (Fonte: Tatewaki Nio (Bolsa de Fotografia Zum/IMS)

Apesar da significativa importância da população africana para a formação das cidades brasileiras, há um processo de apagamento histórico em relação à participação dos africanos e afro-brasileiros no país, sobretudo no que diz respeito às construções e desenvolvimento urbano. A bibliografia de arquitetura opta por definir a identidade nacional como predominantemente portuguesa, limitando a contribuição dos negros apenas à força de trabalho que sustentava o estilo de vida da branquitude.  

E é daí que vem o nosso anseio de conhecer nossa história e conectar todos os pontos que nos levam às nossas origens. Relembrar a história dos afro-brasileiros é entender também a história de nossos ancestrais e fomentar os estudos a respeito da contribuição africana para o desenvolvimento da arquitetura brasileira

A emoção que tomou conta de nós durante a festa certamente vem da sensação de que, mais do que nunca, estávamos entre os nossos. Celebrar a independência de um povo é sempre uma dádiva. Que tenhamos a oportunidade de conhecer ainda mais a nossa história!

Obrigada por essa experiência, Abiola! 

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