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Tempo é algo subjetivo. Todo dia tem 24 horas, mas, como a gente bem sabe, uns voam enquanto outros parecem não acabar nunca.
O mesmo pode ser dito sobre um ano, principalmente, quando o ano em questão envolve a maior tragédia do século. Os últimos 12 meses foram um período de perdas incalculáveis. Tivemos que abrir mão de abraços apertados, segredos ao pé do ouvido, shows de jazz, pistas de dança, restaurantes disputados, beijos na boca, aniversários em família, viagens inesquecíveis e... vidas. A expectativa é que, muito em breve, o Brasil e os Estados Unidos tenham perdido um milhão de pessoas para a Covid-19. Um. Milhão.
Nosso país representa mais ou menos 4% da população global, no entanto, nas últimas semanas fomos palco de um quarto das mortes por Covid-19 mundo afora. Uma verdadeira catástrofe que poderia ter sido evitada.
Desde Março do ano passado atravessamos momentos de ansiedade, surpresa, terror, luto, esperança, tédio, desespero e a sensação de que estávamos eternamente estacionados em "modo sobrevivência". Hoje me dou conta de que esse trauma coletivo é uma cicatriz que, de certa forma, vai nos unir por um bom tempo. Independentemente de classe social, religião, etnia, gênero, orientação sexual ou partido político, todo mundo - sem exceção - teve que se adaptar ao abominável "novo anormal". A gente era feliz dentro de um avião lotado e não sabia.
2020 entra para a história como o ano de uma existência limitada, casamentos cancelados, velórios digitais, reuniões de trabalho via Zoom, malhação no tapete do quarto, acúmulo de álcool em gel, escassez de papel higiênico e uma incógnita desumana de quando - ou se - isso tudo iria passar. Do dia para a noite, o mundo que a gente conhecia literalmente evaporou.
Para um workaholic de carteirinha como eu, a ideia de uma rotina inerte é brutal. Sabia que, de um jeito ou de outro, eu teria que me reinventar. Minha sala virou um estúdio improvisado, passei a derramar tudo o que sentia em artigos compartilhados com vocês (como faço nesse exato momento), investi pesado na minha fotografia, desenvolvi uma coleção de revestimentos com a Portobello e tive a benção de realizar um sonho antigo em plena pandemia: ancorar e produzir meu próprio programa em rede nacional americana.
Esse último projeto demandava o inimaginável na situação apocalíptica na qual nos encontrávamos. Passei seis meses no eixo Nova York - Amazônia cobrindo o aspecto humano da maior floresta tropical do planeta. A experiência em si eu compartilho com vocês noutra oportunidade.
Após cinquenta e seis testes de Covid-19 (todos negativos), semanas de quarentena e meses de apreensão, tive a honra de ser vacinado.
Apesar de a profissão de repórter estar na lista de trabalhadores essenciais na maioria dos estados americanos, fiz questão de esperar alguns meses para ter a certeza de que grupos mais vulneráveis já tivessem tido a oportunidade de se protegerem antes de mim. A essa altura do campeonato, mais de 70% dos septuagenários - e 30% do resto do país - já foram inoculados.
Isso é resultado de uma iniciativa robusta no âmbito federal. Apesar de seu discurso inconsequente, ignorante, xenofóbico e negacionista, o antigo ocupante da Casa Branca no final das contas disponibilizou verba para que a comunidade científica desenvolvesse vacinas o quanto antes. A previsão era que nada realmente eficaz fosse desenvolvido por pelo menos quatro anos. Para a nossa surpresa, em dez meses tínhamos a imunização pronta em três laboratórios.
No dia 20 de Janeiro, Joe Biden tomou posse. Naquele momento, a expectativa era que todos os adultos americanos tivessem acesso à vacina em Setembro. A meta foi antecipada para Julho, Junho, Maio e agora, 19 de Abril. Decidi me vacinar quando soube que iria viver duas semanas dentro de tribos isoladas na fronteira do Equador com o Peru. A ideia de ser responsável pela contaminação de outra pessoa - ou de uma comunidade indígena inteira - me tirou o sono por muito tempo. Como se isso não bastasse, interajo diariamente com parceiros mais velhos e vulneráveis que eu. Seria uma inconsequência não resguardar todos ao meu redor.
Para que essa proteção chegasse aos braços do maior número de americanos o quanto antes, estádios de futebol foram transformados em centros de vacinação, dentistas e veterinários foram recrutados para a linha de frente, aplicativos foram desenvolvidos, campanhas foram criadas, universitários foram contratados por hospitais públicos e a ideia de resgatarmos um mínimo de normalidade fez com que cada vez menos gente questionasse a decisão de tomar a vacina.
Na América do Norte, a resistência à imunização ocorre principalmente entre homens evangélicos brancos de meia idade. Por incrível que pareça, quase sempre os grupos mais privilegiados são também os mais suscetíveis à ignorância disseminada nas redes sociais e à desinformação tóxica que domina o nosso grupo de WhatsApp de cada dia. Coincidência? Arrisco dizer que não. Os impulsos que movem a política hoje são muito semelhantes aos que por séculos sustentaram instituições religiosas. Uma devoção cega desprovida de qualquer questionamento.
Ignorar a ciência vem com um preço. Não se vacinar muito em breve será sinônimo de ainda mais isolamento. Companhias aéreas, escolas, bares, clubes, hotéis, spas e até sites de relacionamento vão demandar o que já está sendo chamado de Vaccine Passport.
Apesar do egoísmo de uma porcentagem pequena da sociedade, a vacinação nos Estados Unidos engrenou de uma forma tão eficaz que apenas dois estados ainda não anunciaram quando estarão prontos para imunizar qualquer pessoa com mais de 16 anos. O apetite por tudo aquilo que a gente almejou tão intensamente no último ano é palpável. Nunca sentimos tanta falta de toque, abraço, barulho, muvuca e chamego. Nova York passa por um momento de renascimento cauteloso. Após um período assustador, a Broadway vai reabrir as portas, restaurantes estão cheios, museus elaboram novas exposições, táxis amarelos voltaram a circular e até salas de cinema ressurgiram das cinzas. Fundamental ressaltar que todos esses lugares ainda demandam o uso da máscara, distanciamento social e higiene compulsiva.
Tudo isso me enche de entusiasmo e esperança mas, infelizmente, o buraco é bem mais embaixo. Nesse exato momento, países ricos como a Inglaterra, a China e os Estados Unidos são donos de 70% das vacinas existentes. O resto do mundo fica com a "xepa". Essa situação é combustível para o aumento da já enorme desigualdade social que assola nosso planeta. O líder da World Health Organization declarou na semana passada que "enquanto todas as nações não estiverem protegidas, nenhuma nação estará".
Parte da solução desse problema está nas mãos de Bill Gates, um dos criadores de uma iniciativa chamada Covax e alvo de teorias conspiratórias macarrônicas porém perigosas. O objetivo da empreitada é distribuir dois bilhões de doses para países carentes nos próximos oito meses. Até agora, 32 milhões já foram distribuídas para mais de 60 nações.
A globalização apenas solidifica o conceito de que o mundo tem que ser analisado como um só organismo. Por mais isolados que alguns países possam ser, ninguém vive num vácuo. A gente precisa um do outro.
Não sou de chorar fácil, mas meus olhos enchem d'água toda vez que vejo alguém sendo vacinado ou quando lembro da agulha no meu braço. Acho importante a gente reconhecer que está sensível, carente, confuso, assustado e faminto por esperança. A pandemia ainda não está no nosso retrovisor, no entanto, pela primeira vez, a luz no fim do túnel me parece uma saída, e não mais um trem em minha direção. Vai passar.