Olhando para o último século, é difícil imaginar uma experiência que tenha sido tão traumática para a humanidade quanto a pandemia pela qual acabamos de passar. É claro que ela tecnicamente ainda não "passou", e provavelmente não passará tão cedo, mas estou falando do auge da tragédia que a essa altura do campeonato já tomou a vida de aproximadamente dois milhões de pessoas entre o Brasil e os EUA.
Hoje em dia, muita gente ainda pega Covid, mas graças a Deus - e, principalmente, à vacina - comparativamente poucos morrem por conta do coronavírus. Com isso dito, todos lembramos dos meses intermináveis nos quais ainda não entendíamos o vírus, não estávamos familiarizados com as formas de contágio, não tínhamos esperança de voltar à nossa vida normal, “descoronizávamos” tudo o que entrava em nossas casas, tomávamos banho de álcool em gel e tentávamos encontrar algo que nos trouxesse um mínimo de paz e sanidade. Pois bem, essa receita de antídotos contra o total desespero variava muito de pessoa para pessoa. Alguns se dedicaram à jardinagem, outros aprenderam italiano, nunca tantas guitarras foram vendidas e a adoção de cães abandonados bateu todos os recordes. No meu caso, criei o hábito de meditar, caminhar, pintar e comprei uma bicicleta ergométrica.
É importante frisar que não me refiro àquelas engenhocas obsoletas que faziam parte da rotina dos nossos pais e avós. Na hora do desespero, me permiti investir em uma Peloton, uma marca de bicicletas ergométricas conectadas à internet que permite que centenas de milhares de pessoas espalhadas pelo mundo possam participar da mesma aula de spinning simultaneamente. Professores talentosos, lindos, inspirados, entusiasmados, sarados e sempre de bem com a vida nos faziam companhia em um momento em que não podíamos estar fisicamente próximos uns dos outros, no entanto, precisávamos de algum tipo de conexão humana… ainda que ela fosse uma mera ilusão no metaverso.
De lá para cá, essa "bike do futuro" passou por muito altos e baixos - e não me refiro às ladeiras. Com a chegada do isolamento social, os preços foram catapultados de mais ou menos 950 dólares para 2.500. A mensalidade do serviço que antes custava apenas 12 dólares, no auge do caos passou dos 40. As ações da marca chegaram a um patamar digno de nomes como Facebook, Netflix, Amazon e Disney, e no fim de 2021, a empresa foi avaliada em meio bilhão de dólares. A pandemia propagou a ideia de home fitness para galáxias nunca antes imagináveis. De repente, malhar com dezenas de estranhos em um espaço fechado era coisa do passado.
Surfando no sucesso incontestável desse novo método de se exercitar, as mentes brilhantes por trás da guinada da marca decidiram construir uma fábrica megalomaníaca em Ohio. Investiram milhões na nova empreitada. Nas últimas semanas - apesar da construção não ter sequer terminado -, o porta-voz da Peloton anunciou que o espaço estava à venda, os preços das bikes despencaram, o valor do titã fitness caiu de 50 bilhões para 5, milhares de profissionais foram demitidos e a estratégia terá que ser totalmente repensada. O “novo normal" voltou a ser o velho.
Por algum motivo, essa notícia desencadeou em mim uma série de memórias relacionadas a experiências pessoais em cima de bicicletas.
Aprendi a pedalar quando era jovem na casa de praia que um tio meu tinha em Búzios (litoral carioca). Naquela época, eu e meus primos não tínhamos Ipads, Ipods ou Iphones. Para nossa sorte, tínhamos que nos contentar com outras formas de entretenimento - dentre elas, brincar de pique-esconde, nadar, surfar e, é claro, pedalar.
De lá para cá, tive várias bikes, mas, hoje em dia, uso as comunitárias espalhadas por Nova York. Se locomover pela Capital do Mundo em cima de uma dessas maravilhas (principalmente as elétricas) é um espetáculo.
A bicicleta, hoje em dia tão presente no nosso cotidiano, foi uma das invenções mais revolucionárias do século 19. Reza a lenda que seu criador estava em busca de algo que pudesse substituir cavalos. Elas não dependiam de ração, não precisavam de muitos cuidados, não morriam e eram muito mais práticas em todos os sentidos. Na realidade, o pneu de ar foi criado com a bicicleta em mente, não com automóveis, ônibus ou aviões.
Na Era Vitoriana, o ato de pedalar teve papel decisivo na emancipação das mulheres na sociedade. Há quem acredite que, sem bicicletas, as sufragistas ainda estariam na cozinha. Por incrível que pareça, muito antes da chegada da pílula anticoncepcional, esse meio de transporte virou um emblema de liberdade de gênero.
Mais tarde, o mesmo objeto foi usado como sinal de protestos na China, ativismo contra a Guerra do Vietnã nos EUA, campanha do Movimento Paz e Amor e mascote de quase todas as causas ambientais significativas do último século.
Nossas leis são focadas em carros, cruzamos países em trem, chegamos no escritório de metrô, atravessamos oceanos em aviões, mas a verdade é que vivemos em um planeta tomado por bicicletas. Pesquisas mostram que há mais ou menos um bilhão de automóveis espalhados pelo mundo hoje em dia. A mesma estatística mostra que esse número triplica quando falamos de bikes. Faz sentido, já que são mais baratas, ocupam menos espaço, fazem menos barulho, nos obrigam a nos mantermos fisicamente ativos, não destroem o meio ambiente e não requerem que seus usuários tenham uma idade mínima para pilotá-las.
Por essas e por outras, hoje em dia é inimaginável não associar essa invenção sobre duas rodas ao urbanismo de qualidade. Cidades como Nova York, Amsterdã, Tóquio, Montreal e Berlim vêm aumentando suas ciclovias e diminuindo a extensão de grandes avenidas para incentivar seus habitantes a adquirir o hábito de pedalar mais e dirigir menos.
Apesar dessa onda ecológica global, poucos países investiram tanto nessa transformação nos últimos anos quanto a França. Até o início do século passado, Paris era uma cidade urbana, porém desprovida de carros, já que naquela época eles ainda eram uma inovação pouco acessível às massas. Após os anos 1920, veículos se tornaram mais baratos e seguros e, assim, tudo mudou. Meio século depois, a Cidade Luz estava abarrotada de automóveis, a falta de estacionamentos era um problema caótico, a poluição se tornou um empecilho e, no final das contas, o estilo de vida dos moradores foi drasticamente prejudicado. De lá pra cá, uma verdadeira revolução aconteceu. Atualmente, Paris é prova de que uma grande metrópole pode prosperar rejeitando a dependência de carros que assombra o resto do planeta e investindo na cultura das bicicletas.
No meu caso, apesar de ter desenvolvido uma paixão inabalável por bicicletas, hei de confessar que hoje em dia medito menos, caminho pouco, uso minha Peloton raramente, mas... prefiro o mundo assim, de mãos dadas.