A primeira aula a que assisti na FAUP (Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto) foi a de Sistemas e Materiais da Construção. Recém-chegado a Portugal para um ano de intercâmbio, imaginava que, entre todos os desafios que se desdobravam a minha frente, a língua não seria um deles. Porém, as primeiras frases do professor António Madureira soaram aos meus ouvidos como o idioma russo. Não só pela rapidez da fala de um povo com completo domínio da língua que inventou, mas pelos diversos termos e expressões completamente diferentes dos brasileiros.
Mal sabia eu que aquele professor se tornaria meu colega do coro, posteriormente meu chefe, conselheiro e o grande amigo que encontro a minha espera no saguão do aeroporto sempre que retorno ao Porto.
Madureira conduzia um escritório que além de trabalhos próprios funcionava como satélite do escritório de Álvaro Siza, desenvolvendo projetos em coautoria. Entre os trabalhos dos quais participei figuraram a Nova Biblioteca da Faculdade de Direito de Coimbra, um complexo de edifícios de uso misto e uma residência unifamiliar na Maia. Essa última chegou ao escritório ao mesmo tempo que eu, o que me possibilitou participar de todo o processo do desenho até o início das obras.
O gabinete, como nos referíamos ao escritório, ocupava um antigo apartamento. Uma das salas principais abrigava a mesa do Madureira, rodeada por estantes e pranchetas, e na outra ficavam os quatro postos de trabalho, além da plotter.
Desse estúdio avistava-se o comprido corredor com estantes forradas de câmeras e material fotográfico, outra paixão do Madureira, que viria a se tornar minha também. O espaço diminuto fortalecia o espírito colaborativo: todos se envolviam nos projetos uns dos outros, e comentavam, criticavam, propunham mudanças.
Às vezes o telefone tocava e era o Álvaro Siza. Escutávamos, por intuição, o agendamento de uma reunião que anunciava a transformação daquele espaço. Computador portátil, livros, câmeras e relógios desmontados sairiam da mesa. As maquetes (ou o que havia delas) iriam para posição de destaque. As folhas de desenhos com croquis de reuniões anteriores seriam reunidas.
Se o Siza chegava de táxi, eu descia para abrir a porta. Antes de subir, a pedido dele, fazíamos uma inspeção na loja dos chineses vizinha ao prédio, onde ele se maravilhava com trelas munidas de lanterna ou outras invencionices de uma típica loja de 1,99.
Estar com o Siza no escritório do Madureira era como apreciar um momento de criação constante. As burocracias e aflições do seu próprio escritório davam lugar à análise e à modificação das diversas maquetes de estudo, aos desenhos ininterruptos em busca da solução mais acertada, mas sem medo de propor o estapafúrdio.
Certa vez Siza chegou com outra ideia e, ao ser questionado sobre a mudança de opinião, respondeu: “Ah, mas isso foi outro Siza!”. Estava ali a prova de como o projeto em seu processo evolutivo permite falhas, retornos, mudanças de rumo e, principalmente, estar aberto a um novo entendimento, com maior clareza para editar os caminhos a serem seguidos.
Mesmo após estudo, anteprojeto, executivo e orçamentos, o início da construção da casa não significava que novas opções não pudessem surgir.
Não participei do final da obra, pois a crise do mercado me trouxe de volta ao Brasil. Mas, muitos anos depois, pude ver os clientes felizes com o resultado.
Madureira me ensinou, entre muitas coisas, a expressão “impante de alegria”, ao se referir a um cliente ao qual acabávamos de visitar sua casa pronta.
Percebi que não há prazer maior para um arquiteto do que ver a reação nos olhos de quem é louco o suficiente para se dispor a construir uma casa.