“O que eu acho incrível em Portugal é a calçada...”, ponderou o editor Fernando Márquez, enquanto pisava nas caprichadas pedras de um passeio público em Matosinhos, em Portugal. “É difícil encontrar essa qualidade em outros países”. A cena ocorreu em novembro passado enquanto caminhávamos em busca de um restaurante, na noite que antecedeu a inauguração da Casa da Arquitectura, instituição dedicada a acervo, debate e exposição.
O olho de Márquez é treinado: seu trabalho é documentar arquitetura contemporânea internacional, passando semanas em contato com os mais festejados arquitetos do mundo, de Herzog & de Meuron à Kazuyo Sejima, passando por Steven Holl e David Chipperfield. Ele edita uma das publicações mais importantes do setor, a El Croquis, revista espanhola publicada desde o início da década de 1990.
Ao escutar o comentário, imediatamente lembrei-me de um texto que escrevi no jornal Folha de S. Paulo no qual afirmei que “é preciso ver a calçada como espaço mais importante da cidade”. Além de lastimar a condição dos passeios paulistanos, ponderei que “trata-se do espaço democrático onde ocorrem as relações públicas. Ali, o cidadão caminha em velocidade civilizada, olha nos olhos do outro, observa árvores e vitrines”. Afinal de contas, de que adianta uma cidade ter belos edifícios privados e péssimos espaços públicos?
No mesmo jornal, Marcio Kogan fez considerações semelhantes ao ser convidado, juntamente com outros cinco arquitetos, a propor como seria São Paulo se ela tivesse “uma nova chance”. Com a imaginação estimulada pelos editores do diários, os projetistas sonharam com a criação de um parque linear às margens do Tietê, a exemplo de Ruy Ohtake, ou com a transformação da avenida Rebouças num bulevar, ideia de Martin Curullon. Kogan, a seu modo, lembrou exatamente da calçada: “Como seria sua rua dos sonhos? Sei que é utopia: seria simples e sem buracos!”, disse, temperando modéstia com ironia.
A calçada entrou novamente em pauta recentemente quando a prefeitura de São Paulo anunciou a intenção de retirar as pedras portuguesas do centro paulistano, substituindo-as por placas de concreto, como as da Avenida Paulista. A iniciativa seguirá três fases, ao custo de 30 milhões de reais. Jaime Lerner, o autor do desenho dos calçadões do centro paulistano, protestou. “Eu gosto do mosaico português. Sempre gostei. É uma marca de Curitiba e de diversas outras cidades”, ponderou. “Desconheço as razões que levaram à decisão. Mas todos os pisos precisam de boa manutenção”, declarou o urbanista, lembrando que as cidades brasileiras não podem se desfazer de parte de sua identidade, da mesma maneira que não jogamos fora fotografias antigas de nossas famílias.
Meses antes da polêmica da pedra portuguesa, Lerner foi chamado pela mesma administração para traçar uma proposta urbana para o centro paulistano.
Nas últimas semanas, eu estive no centro de São Paulo em domingos seguidos para acompanhar o fotógrafo que está documentando a arquitetura dos prédios da região que irão ilustrar uma edição que estou preparando. Em todas as ocasiões, não foi a qualidade da manutenção das calçadas que me chamou a atenção, mas sim a quantidade de pessoas morando nas ruas, fazendo do mosaico português, colchão.
Diante disso, parece até mesquinho lembrar que o desenho, seja da arquitetura, do design, dos interiores e dos equipamentos públicos, simplesmente reflete o estágio em que se encontra uma sociedade. E a sensação que tive, vendo centenas de pessoas ao relento, é que nossas calçadas estão, mais do que nunca, próximas da barbárie.
Seja como for, após o comentário de Márquez sobre a qualidade do desenho português, seguimos caminhando, em busca de um restaurante de pescados perto do Atlântico Norte, sem tropeçar em nenhum buraco ou vulto dormindo pelo chão. “É uma das minhas maiores virtudes”, revelou o editor espanhol, festejando o próprio faro para descobrir restaurantes autênticos, como aquele em que terminamos a noite, saboreando inesquecíveis lagostas grelhadas.