O verdadeiro amor é vão
Estende-se infinito
Imenso monolito
Nossa arquitetura.
O vão a que ele se refere é negativo, algo feito em vão, à toa, um vazio. Todavia, para a arquitetura, o vão é um desafio a ser vencido, um salto e elevação sobre o vazio, e Gil continuou o verso com uma definição de seu amor fazendo um paralelo com a arquitetura, “nossa arquitetura”. Para críticos como Mario Pedrosa, o desafio técnico que qualifica a arquitetura brasileira é uma metáfora de um salto sobre o passado colonial, criando uma nova narrativa de país moderno.
Esse trecho da música inspirou o título da exposição Infinito Vão, aberta no final de setembro na Casa da Arquitectura, em Portugal. Com curadoria minha e de Guilherme Wisnik, a mostra apresenta, em mil metros quadrados, 90 anos da produção da arquitetura brasileira, começando em 1930 e chegando até os dias atuais.
LEIA TAMBÉM: Elevador Lacerda: conheça a história desse projeto marcante da arquitetura brasileira
A exposição é um desdobramento da Coleção Brasil, um conjunto de 45 mil documentos doados por arquitetos e herdeiros para comporem o acervo da Casa da Arquitectura. A infraestrutura da instituição para conservação de documentos de arquitetura encontra poucos paralelos no mundo. Depois de realizarmos a curadoria da coleção, num trabalho iniciado há mais de dois anos, transformamos os documentos em uma narrativa da produção nacional.
Trata-se de uma narrativa temporal, dividindo o período em seis núcleos, estabelecendo diferentes fases. Um dos pontos mais importantes da linha curatorial que criamos está apoiado na relação da arquitetura com outras manifestações culturais, sobretudo a música, o cinema e a literatura.
Assim, além da música de Gil, destacamos a voz de autores diversos, a exemplo do poeta Carlos Drummond de Andrade. Envolvido diretamente com a primeira geração de arquitetos modernos do Rio de Janeiro, Drummond trabalhava ao lado de Lucio Costa no Ministério da Educação e Saúde. A proximidade entre eles fez com que o poeta revisasse o memorial descritivo que Costa apresentou no concurso do Plano Piloto de Brasília. Expomos o manuscrito, assim como também o poema que Drummond escreveu em louvor ao prédio do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, criado por Affonso Eduardo Reidy. Também mostramos o projeto de uma casa que Oscar Niemeyer criou para ele, em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, nunca construída.
Outro ponto interessante que balizou nosso trabalho foi a elaboração do cenário de Orfeu da Conceição, criado no segundo semestre de 1956 por Oscar Niemeyer. O musical marca o primeiro encontro entre Vinícius de Moraes, que escreveu o texto e as letras das músicas, e Tom Jobim, autor das melodias. Ao mesmo tempo que Niemeyer estava criando os cenários, que estilizam um barraco do morro da Babilônia, no Rio de Janeiro, ele desenhava os palácios de Brasília.
Com esse pano de fundo, apresentamos cerca de 90 projetos, desde a casa da Rua Itápolis, de 1930, até os jovens coletivos que trabalham atualmente com causas sociais, a exemplo do Goma, de São Paulo.
Outro ponto interessante da relação entre música e arquitetura ocorre com a produção de Lina Bo Bardi. Em “Bahia, minha preta”, Caetano Veloso nomeia alguns dos pilares da Bahia moderna, dizendo:
Te chamo de senhora
Opô Afonjá
Eros, Dona Lina, Agostinho e Edgar
Depois de viver na Bahia, um dos principais trabalhos de Lina Bo Bardi foi o Sesc Pompeia, em São Paulo. O espaço inspirou Wally Salomão e Adriana Calcanhotto a escreverem uma música, que batiza um dos discos da cantora, lançado em 1994. Calcanhotto preparou, lindamente, um show emocionante para a abertura da exposição, solidificando uma ponte, não só entre Brasil e Portugal, mas também entre a “nossa arquitetura” e a cultura brasileira.
A mostra Infinito Vão - 90 anos da arquitetura brasileira, fica em cartaz até abril de 2019, na Casa da Arquitectura, Lisboa, Portugal.