Foi num dia desses, passando alguns minutos no TikTok, que um vídeo cruzou nosso caminho e seus três minutos foram o suficiente para gerar uma reflexão que se tornaria a coluna desse mês. Estamos falando de um vídeo de Jéssica Pádua, criadora de conteúdo digital, mochileira, poeta e comunicadora, dona do perfil Complexica, no TikTok e no Instagram.
Jess, como é conhecida nas redes sociais, é uma goiana de Minaçu, uma pequena cidade que fica ao norte do estado de Goiás, que há um ano viaja pela América do Sul e que acredita que viajar é uma forma de viver em movimento. Especificamente nesse vídeo, Jess comenta sobre como percebeu que levava uma vida boba antes de se aventurar na vida movimentada de mochileira. Quando se mudou de Goiás para São Paulo acreditou que desfrutaria das opções que a cidade paulista oferece.
Ao contrário disso, nos 12 anos vivendo por lá não aproveitou como gostaria, fazia sempre as mesmas coisas, ia sempre aos mesmos lugares.
A criadora de conteúdo questiona os motivos pelos quais mantemos a mentalidade de buscar e experimentar coisas novas somente quando estamos viajando e reforça que manter o “olhar de turista” na cidade em que vivemos também é uma maneira de viajar, mesmo sem sair da sua própria cidade.
Viajar com constância é um privilégio de poucos. O trajeto frequente da maioria das pessoas é de casa para o trabalho, do trabalho para casa. Esperar que momentos de viagem sejam os ideais para experienciar uma novidade é uma maneira muito chata de levar a vida. Tentar encontrar a empolgação em uma nova experiência do cotidiano é um meio de trazer leveza aos nossos dias.
O olhar sobre a cidade é um exercício frequente entre urbanistas e, de alguma maneira, esse tema sempre nos atravessa.
Em uma recente leitura de A Porta no Muro, conto de H. G. Wells, o tema voltou à tona. Wells nos leva a um mundo onde o protagonista da história encontra uma misteriosa porta verde numa parede branca e é a partir de cada decisão tomada por ele ao longo da sua vida que uma nova porta se abre.
Em uma brincadeira descrita pelo personagem encontra-se também uma maneira de redescobrir a cidade:
- Você já brincou de Passagem do Noroeste comigo?… Não, você não fazia o mesmo caminho que eu!
Ele continuou:
- Era o tipo de jogo que toda criança criativa faz o dia todo. A ideia era a descoberta de uma passagem noroeste para a escola. O caminho para a escola era bem simples; o jogo consistia em encontrar um caminho que não fosse simples, saindo dez minutos mais cedo numa direção qualquer, quase impossível, e seguindo por ruas desconhecidas até meu objetivo.
(A porta no muro, H. G. Wells, capítulo II)
A brincadeira transforma um deslocamento simples do cotidiano, como uma ida à escola, em uma experiência nova e excitante. O conto é cheio de metáforas sobre o conflito entre atender às expectativas sociais ou aos próprios sonhos pessoais.
E questiona como as demandas da vida adulta vão diminuindo a nossa capacidade de descobrir, conhecer e fantasiar momentos, algo que é tão presente no dia-a-dia das crianças.
“- Acho que minha segunda experiência com a porta verde marca o mundo de diferença que existe entre a vida ocupada de um estudante e o lazer infinito de uma criança pequena.” (A porta no muro, H. G. Wells, capítulo II)
O vídeo no TikTok e a experiência transcendente com a leitura do conto de Wells nos levaram de volta à experiência que tivemos no primeiro ano da graduação de Arquitetura: a prática da Deriva Urbana. A Teoria da Deriva foi proposta pelo Teórico Internacional Situacionista Guy Debord, em 1958, como ferramenta para o processo de planejamento urbano. Derivar é uma atividade comum nos cursos de Arquitetura e Urbanismo porque permite a experimentação da cidade de um novo modo, apresentam-se detalhes que comumente passam despercebidos, mas que alteram o caminhar.
O exercício consiste em andar livremente, sem rota, criando um caminho próprio, orientado pelo interesse dos sentidos: a captura de um som, um movimento, uma imagem marcante, um aroma. O experimento nos instiga a observar as relações sociais, a descobrir o território e a paisagem urbana, sem previsibilidade.
“Uma ou várias pessoas que se lançam à deriva renunciam, durante um tempo mais ou menos longo, os motivos para deslocar-se ou atuar normalmente em suas relações, trabalhos e entretenimentos próprios de si, para deixar-se levar pelas solicitações do terreno e os encontros que a ele correspondem. [...].” (Guy Debord. Trecho do texto publicado no nº. 2 da revista Internacional Situacionista em dezembro de 1958.)
Em cidades cada vez mais caóticas, em ritmo frenético e projetadas para o uso do automóvel, é desafiador e necessário propor um exercício como esse. Mesmo no trânsito as pessoas já não se olham mais; durante o semáforo no vermelho estão todos distraídos com seus celulares. Em pequenos trajetos a pé, por já conhecermos todos os defeitos do calçamento, também andamos olhando pro celular. Desacelerar é importante!
“[...] na cidade contemporânea, a sedução pela imagem vem sendo cada vez mais anestesiada pela própria atrofia da nossa capacidade perceptiva, afinal, sob o advento da velocidade e da espetacularização somos conduzidos a experiências onde a rotina, o olhar passageiro, o olhar transeunte e a baixa definição de linguagens não verbais formam um conjunto de comportamentos que têm encolhido a nossa capacidade de olhar a cidade.” (CAPELATO, Rodrigo. Imagem e Cidade: O encolhimento do Olhar. 2017)
Nessa distração perdemos simples percepções do cotidiano: a fachada da casa que foi reformada, a construção centenária que acabou de ser demolida, um jardim que recebeu novas flores, a vida acontecendo.
Kevin Lynch é um dos grandes nomes do urbanismo e autor do livro A imagem da cidade. Na obra, o autor destaca modos e ferramentas de percebermos a cidade e tudo que a compõe. Pode ser através de caminhos que percorremos (ruas, avenidas, calçadas, estradas de ferro), limites que encontramos (rios, viadutos, praças), bairros que adentramos e vivenciamos, pontos nodais, que nos conectam de um lugar ao outro (estações de metrô, esquinas, praças) e os marcos, que são os elementos singulares e memoráveis (torres, esculturas, edifícios).
A percepção de cidade é individual e sua imagem é um processo de construção que se elabora à medida que há a interação do cidadão com a paisagem, de como cada um vivencia e percorre seu espaço. Assim como trouxemos na coluna anterior, essa vivência também faz parte da construção de memórias e de significados.
Aqui não estamos falando sobre passeios extremamente dispendiosos física e financeiramente. Estamos falando do simples: uma ida ao parque, uma visita à praça do bairro, um caminho diferente para ir ao supermercado, assim como nos ensinou a criança do conto de Wells.
Quando foi a última vez que você vivenciou algo novo? Treinar a mente para observar e adquirir novas percepções sobre o espaço é romper com o ritual rotineiro, dar lugar a novas cores, novos aromas, roteiros e caminhos. Passamos a viver o inédito, que nos estimula e nos enriquece culturalmente. Observar a cidade é viver a sua totalidade e sua pluralidade.