“Vestir e habitar são duas necessidades básicas que se completam, que traduzem um pouco do que somos.”
A explicação é da professora Maria de Fátima, doutora em Artes pela ECA/USP, docente dos cursos de Moda e Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Moura Lacerda e vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos e Pesquisas em Moda (Abepem).
Conversamos com ela para entender melhor como moda e arquitetura se intercruzam e o que têm a ensinar sobre o tempo em que são produzidas. Confira neste artigo!
O que a moda e a arquitetura dizem sobre o tempo e a sociedade
Apesar de servirem essencialmente a propósitos elementares como vestir e abrigar, a arquitetura e a moda podem assumir diversas formas em diferentes períodos. Uma pesquisa rápida já revela que a moda dos anos 50, por exemplo, é muito diferente da contemporânea, da mesma forma que a arquitetura e o design se transformaram bastante ao longo das décadas.
E por que a moda e a arquitetura incorporam elementos tão variados em épocas, culturas e lugares distintos? Porque elas vão muito além de abrigar ou vestir. Também são expressão de identidade, de política e de comportamento.
Segundo a professora Maria de Fátima, elas trazem sinais do zeitgeist, termo alemão que significa “espírito do tempo”. Isso quer dizer que, inevitavelmente, os arquitetos, estilistas e designers são influenciados por toda a cultura e o momento histórico em que vivem, e essas características aparecem de maneira marcante na moda e na arquitetura.
Nas palavras da professora, elas são “filhas do tempo”. Por exemplo: os traços simples da Arquitetura Moderna, corrente à qual se filiam nomes como Oscar Niemeyer, são reflexos do período de revisão de valores e rejeição a tudo o que era tradicional que marcou as primeiras décadas do século XX.
Na moda, o movimento é similar. Um exemplo clássico é a minissaia, símbolo de um tempo de libertação e contestação jovem.
“A década de 60 chegou em clima de euforia pelo consumo gerado pelo Pós-Guerra nos Estados Unidos”, explica Maria de Fátima, “e anunciava também mudanças no comportamento juvenil. Na música, surgia o rock and roll e o ícone Elvis Presley. As saias femininas rodadas começavam a ficar no abandono”.
Quando um arquiteto ou um estilista inicia um projeto, ele fatalmente manifesta elementos da cultura e do tempo em que vive. Isso fica evidente até no modo como um trabalho arquitetônico é concebido — a realidade dos projetos 3D, por exemplo, é uma marca contemporânea.
Moda e arquitetura através das décadas
“Moda e arquitetura têm o mesmo ponto de partida, que é o corpo humano, a proporção, a busca pela forma.”
Maria de Fátima diz também que “As pessoas compõem o cenário da cidade, que pode ser compreendido como um espaço de representação, sociabilidade, visibilidade e interação”.
Essa não é uma relação nova. Maria de Fátima acredita que o elo entre elas é antigo, e está intimamente conectado à História da Arte. Escolhemos alguns períodos marcantes das últimas décadas para exemplificar como moda e arquitetura se aproximam:
A moda inspirada pela arquitetura dos “anos dourados”
Nos “anos dourados”, que permeiam as décadas de 40 e 50, a arquitetura brasileira foi marcada por profissionais conscientes do impacto e das transformações que as criações deles podiam gerar na sociedade, sempre de olho no futuro e na utopia. A Arquitetura Moderna chegou ao auge no país com a projeção de Brasília, do Complexo Arquitetônico da Pampulha e de obras como o MASP.
Em entrevista ao canal Arquitetura e Urbanismo Para Todos, projeto do Conselho de Arquitetura e Urbanismo, o arquiteto Sérgio Parada ressalta que, mesmo que o entendimento sobre os processos arquitetônicos jamais tenha sido difundido em todas as camadas da sociedade, eles inescapavelmente influenciaram diversos aspectos de todas as manifestações artísticas e culturais do período.
Ainda que o Brasil não tenha vivido a Segunda Guerra Mundial de maneira tão intensa quanto a Europa, os anos 50 também foram um momento de reinvenção e reconstrução para o país.
O arquiteto Sylvio de Podestá, durante entrevista ao mesmo canal, rejeita limitar a arquitetura brasileira aos grandes nomes do período, como Niemeyer e Bo Bardi, mas reconhece que eles se tornaram globalmente a marca do país.
Essa identidade repercute na moda, e estilistas brasileiros fazem referência a ela até hoje. Um exemplo que se destaca é Pedro Lourenço — filho dos estilistas Glória Coelho e Reinaldo Lourenço. Em 2010, o jovem estreou em Paris com uma coleção inspirada no trabalho de Niemeyer, que ele também retomou durante o período como diretor criativo da marca de lingerie italiana La Perla em 2016.
E Niemeyer não é o único brasileiro da Arquitetura Moderna a ser inspiração para a moda. Em 2010, a marca Maria Bonita lançou uma coleção que fazia referência ao estilo de Lina Bo Bardi. A estética das vigas aparentes e dos blocos de concreto da arquiteta foram transpostas para peças austeras, mas leves.
A apresentação da linha foi no Sesc Pompeia, em São Paulo, obra da própria arquiteta homenageada.
A pós-modernidade dos anos 70 aos 90
O estilo retrô, tão em voga hoje em dia na moda e na decoração, é fortemente influenciado pelas décadas de 70 e 80. As estampas geométricas são uma marca do design dessas décadas, e têm sido recuperadas em revestimentos, almofadas, tapetes e cortinas, além de ganharem destaque nas roupas.
Nesse período, surgiu a Arquitetura Pós-Moderna, marcante entre os anos 70 e 90. Ela não é oposta ao Modernismo, mas uma reposta eclética a ele, e incorpora elementos de várias vertentes de todas as épocas.
Um exemplo da corrente é Sylvio de Podestá, criador de um prédio icônico para a Arquitetura Pós-Moderna. Ao lado de Éolo Maia, ele projetou o Centro de Apoio Turístico Tancredo Neves, em Belo Horizonte.
Apelidada de Rainha da Sucata pelos mineiros, a construção já foi duramente criticada, devido ao ecletismo de estilos que incorpora, como o arquiteto e ensaísta Francesco Perrotta-Bosch acentua na revista piauí.
A professora Maria de Fátima explica:
"essa arquitetura tem uma postura crítica, que implica em questionar o moderno. Nos EUA, face à política de Ronald Reagan, o consumo imperava, permitindo o enriquecimento de grande parte da população, o que podemos observar como influência na arquitetura".
Ela percebe a relação dessa linha de arquitetura com a moda em duas características principais: inclusividade e ambiguidade tensionada.
Na inclusividade, “não existe padronização, mas uma ideia da obra para quem a habita”. Já a ambiguidade e a tensão “misturam e sobrepõem os elementos utilizados, como no caso do arquiteto Ruy Ohtake e da estilista Glória Coelho”.
As grandes tendências dos anos 2000
Os anos 2000 já se iniciaram com uma mudança de abordagem na arquitetura. Em 2000, o tema da Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza, Itália, estampava “Cidade: menos estética, mais ética”.
O milênio começou imerso no star system da arquitetura, repleto de grandes nomes afeitos a obras monumentais. O valor criativo dos starchitects, como Zaha Hadid, ainda é indiscutível, mas se passou a cobrar responsabilidade social e uma visada verdadeiramente urbanística da arquitetura.
A ONU revela que mais da metade da população mundial já vive em cidades, portanto a exigência por um urbanismo otimizado nunca foi tão urgente. Se o Modernismo mirava o que as cidades deveriam ser e o Pós-Modernismo visava o que havia sido, a arquitetura dos anos 2000 fixa o olhar no que as cidades efetivamente são, e procura soluções para atender às necessidades do agora.
Na moda, a preocupação é semelhante. A atenção ao social — que já crescia desde a década de 60 — ganha relevância. A moda sustentável e engajada fica em evidência, e as denúncias contra crimes como trabalho escravo no mundo da moda recebem destaque.
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