O produto da indústria moveleira é definido por três pilares: matéria-prima, máquina/mão de obra e design. Com a crescente globalização, os dois primeiros tornam-se iguais ou muito semelhantes. A maior parte das máquinas é fornecida pela Alemanha e pela Itália, e materiais como MDF (Medium Density Fiberboard), principal substituto da madeira maciça, são internacionalmente padronizados. A única ferramenta de diferenciação no setor, portanto, é o terceiro pilar: design. Um produto bem pensado propõe a utilização de novos materiais, otimiza processos produtivos, eleva a qualidade do resultado e influi até mesmo nas estratégias de marketing de uma empresa.
A última High Design, em São Paulo, mostrou que a constatação acima não é novidade para a indústria do setor. Na feira, focada em móveis de alto padrão (ela se originou da Casa Brasil, criada em Bento Gonçalves), é notável a mudança de mentalidade, na forma de parcerias de “design assinado” ou na contratação de equipes internas de projeto. Hoje, as indústrias do país estão muito menos afeitas às cópias, abundantes nos anos 1980 e 1990 quando, equipadas com as máquinas europeias, as fábricas brasileiras conseguiam produzir simulacros do que era lançado lá fora.
É preciso atenção para que a produção industrial não se resuma apenas a fatores externos à indústria, incapazes de competir nacional e internacionalmente. Um bom exemplo é o do móvel planejado de altas séries. A tipologia se caracteriza pelo uso de superfícies planas – principalmente MDF e seu irmão MDP (Medium Density Particleboard), menos maleável –, cortes retilíneos e acabamentos como a impressão por rolo. Basicamente, a indústria se encarrega do corte e usinagem das placas e da montagem final. Sem design, o produto torna-se mero resultado da tecnologia e das novidades advindas dos fornecedores de matérias-primas; pode ser produzido na China ou no Brasil e será igual.
Máquina de esculpir
Faço essa pequena introdução para falar de algo que notei na High Design: a presença numerosa de móveis em madeira maciça – em especial cadeiras – com desenho escultural. Encanta e suscita questionamento a capacidade de uma indústria criar peças de aspecto tão artesanal. A explicação responde por “usinagem em CNC de cinco eixos” (aos que não são familiares, CNC é sigla para Computer Numerical Control e tornou-se sinônimo de máquinas que respondem a comandos digitais). As CNC mais difundidas possuem três eixos e são utilizados para fazer cortes otimizados em materiais planos. As de cinco eixos, por sua vez, se assemelham mais a um braço humano, capaz de mover-se em todas as direções. Uma maneira de entender a diferença entre o que uma e outra são capazes de fazer é imaginar a confecção de um rosto, partindo de um bloco de madeira: apenas a CNC de cinco eixos consegue alcançar locais em ângulos negativos, como os buraquinhos do nariz.
A máquina adentrou os principais polos moveleiros do país a partir de meados dos anos 2000. Mas não basta possuí-las, concordam os três designers com quem conversei sobre o assunto. “É engano pensar que a máquina descarta o operador. É como qualquer ferramenta, precisa ser usada por uma pessoa habilidosa e criativa”, diz Jader Almeida, que desenha exclusivamente para a Sollos, indústria catarinense que adquiriu a CNC em 2008. Bruno Faucz, que atualmente tem seus móveis produzidos por quase uma dezena de fábricas, entre elas a Líder, de Minas Gerais, disse que já presenciou a máquina – de custo altíssimo – sendo usada apenas para fazer cortes planos e furos, algo aquém de seu potencial. “É como ter uma Ferrari na garagem e não saber pilotá-la”, completa Guto Indio da Costa.
O carioca, um dos principais designers industriais no país, trouxe para a High Design o resultado de sua colaboração com a San German, empresa de Santa Catarina. Os quatro modelos de cadeiras e poltronas possuem uma complexidade que, ele brinca, necessitariam de um Michelangelo dentro da fábrica. “O grau de precisão, organicidade e tridimensionalidade dessas peças é inviável manualmente. Um artesão genial levaria três semanas para fazer a cadeira, e ela custaria 20 mil”, diz ele (as peças saem da fábrica por valores entre 700 e 2.000 mil). A produção, no entanto, não dispensa processos artesanais, como as lixas, fato que deu à coleção o nome Machina&Manus.
Jader Almeida emprega a tecnologia em diversos de seus produtos, como as poltronas Clad e Celine, de curvas sinuosas. Para serem usinados, os desenhos têm que ser divididos em várias partes, posteriormente montadas – é na transformação do projeto em um “desenho executivo” digital que entra a sabedoria do técnico. Jader estima uma média de 2 horas/máquina para a fabricação de cada cadeira. O custo da hora CNC é mais alto que o de outras máquinas, como a tupia. Bruno Faucz costuma fazer uso apenas nos detalhes de execução mais complexa, caso do braço de sua poltrona Wing, da marca Moora, de São Bento do Sul (SC). “É preciso usar de modo a realmente agregar valor e adequar o produto ao mercado a que ele se destina”, diz ele, ao lembrar o quanto o design é uma profissão tão técnica quanto criativa.
Pela capacidade de executar formas mais elaborados e encaixes sofisticados, a CNC de cinco eixos abre um leque de possibilidades ao móvel maciço de madeira, dialogando com a nossa principal tradição. No entanto, há um alerta para que a criação não seja seduzida por possibilidades técnicas, em produtos reduzidos a malabarismos estéticos. Criar móveis corretos, que alargam o campo do design, passa por um entendimento global da cadeia produtiva. Só assim é possível inovar utilizando as ferramentas de um bem equipado parque industrial.