Jonathas de Andrade ganha exposição retrospectiva na Estação Pinacoteca
Enquanto o bote é o movimento de lançar-se para frente, em busca de desejos, como um réptil atrás de sua presa, o rebote é a resposta do mundo aos nossos anseios. É assim que Jonathas de Andrade, um dos principais nomes da cena contemporânea nacional - que assina o pavilhão brasileiro da Bienal de Arte de Veneza deste ano - reflete sobre o título de sua exposição panorâmica, Jonathas de Andrade: O rebote do bote, aberta no último dia 24 de setembro, na Estação Pinacoteca, em São Paulo. “A gente se lança, mas sempre tem o rebote, que é o mundo dizendo ‘não é bem assim’”, explica. “Quando você está retratando o outro, também tem dúvidas éticas, questões delicadas. Essa revisão dos meus 15 anos de trabalho foi pensar muito sobre isso”.
Aos 40 anos, com passagens pela faculdade de Direito – que ele largou - e formação em Comunicação Social, o artista alagoano, com base em Recife, reflete sobre sua carreira bem sucedida nacional e internacionalmente. “As pessoas acham que meu reconhecimento veio muito rápido. Mas eu quis ser artista a minha infância toda. Quando aconteceu, para mim, foi ‘finalmente!’”, disse.
Jonathas conta que se lançou ao mundo das artes também por estímulo de sua irmã, quem lhe apresentou o cinema e a literatura, e após receber conselhos do primeiro namorado. “Eu dizia ‘Quando eu estiver pronto, eu vou fazer’. Aí um dia ele respondeu: ‘É agora! Você está pronto!’ Foi quando produzi Amor e felicidade no Casamento, meu primeiro trabalho, de 2008, que apresento logo na entrada da mostra”.
Com curadoria de Ana Maria Maia, a exposição é a maior do artista organizada até hoje, após 15 anos de trajetória, e foi posicionada no quarto andar da Pina Estação. Dividida em três salas, apresenta a produção de Jonathas com fotografias, vídeos e instalações, de diferentes temáticas que alcançam profundas questões políticas e sociais brasileiras.
Na sala 1, intitulada Corpo pra Jogo, a narrativa da mostra apresenta a sexualidade em um conjunto de obras que incorrem em tematizações da masculinidade e homoerotismo.
Entre elas, aparece Ressaca Tropical, de 2009, uma das suas primeiras de grande repercussão, feita a partir de um diário encontrado no lixo, em Recife. “É um diário de aventuras amorosas e sexuais de um vigilante nos anos 70. Basicamente eu digitei os registros feitos à mão. O que eu amo é que ele não fica no passado, ele sempre começa um romance e entra em detalhes de sua vida íntima. Na minha leitura, quando ele começa a mencionar homens, tem uma bissexualidade ali”.
A partir do diário, Jonathas buscou imagens que pudessem correlacionar com os escritos, como de beijos, cenas de praia, ressaca, além de resgatar fotos que fazia de lugares abandonados ou da arquitetura modernista de Recife. “Esse projeto me lançou na Bienal de Mercosul, em 2009. Foi quando o Adriano Pedrosa [diretor artístico do Masp] me conheceu e me levou para a Bienal de Istambul”.
Na mesma sala, apresenta Maré, obra de 2014, com uma série de retratos do mar em diferentes níveis. “Relaciona a lua, a maré e o desejo”, disse.
Uma obra entre as mais recentes é Achados e Perdidos, de 2020, feita a partir de uma coleção de sungas perdidas que o artista recolheu na academia onde praticava natação em Recife. “Encomendei esses corpos para artesãos que fazem potes e santos de barro. É uma coleção maluca de 60 sungas”, disse.
Na sala 2, batizada de Jogos de Corpos, existe uma reflexão sobre as dinâmicas de alteridade, dotadas de mecanismos de escuta, colaborações e resistência.
Entre elas, há a série fotográfica ABC da Cana, de 2014, em que cortadores de cana criam o alfabeto usando cana-de-açúcar, a pedido de Jonathas. “A minha ideia veio de uma revista dos anos 50, 60, chamada Brasil Açucareiro, que tinha esses desenhos do alfabeto feito com as folhas da cana. Quis fazer o mesmo com os trabalhadores dos canaviais”.
Em Educação para adultos, de 2010, o artista inspirou-se no método Paulo Freire de ensino e demonstra palavras como fogo, dinheiro, cabelo e cachaça ao lado de imagens correspondentes.
“Minha mãe é pedagoga, hoje aposentada. Ela teve contato com esses cartazes do método Freire nos anos 80. Eu consegui os originais, uma publicação da Editora Abril feita com uma imagem e uma palavra. O método usa 16 conceitos básicos da vida de uma certa população, um grupo social. Aí propus para um grupo de lavadeiras e costureiras analfabetas que a gente conversasse por um mês na pausa do almoço e, a partir dessas conversas, fiz novos cartazes com outras palavras e outras imagens”, explica. “Mas mantive a tipografia, a estética, o jeito de fotografar meio de estúdio caseiro, editorial”.
Em 2 em 1, de 2010, Jonathas fotografa dois marceneiros transformando duas camas de solteiro em uma de casal. “É a cama que eu dormi por muito tempo. Tinha me juntado com o namorado e só tínhamos cama de solteiro. Esse trabalho é sobre como se juntar numa relação. Parece que é uma coisa fácil, mas a gente sabe que não é. É um projeto que fala sobre essa metáfora do amor”.
Dois anos antes, sob a mesma temática, Jonathas criou sua primeira obra: Amor e felicidade no Casamento, um guia de bons costumes. “Eu criei esse manual pensando na vida fictícia de um casal, baseado nos meus pais, na minha família, no certo, no errado. Nela eu junto texto e imagem com dizeres "não pode fazer isso", "não pode fazer aquilo", como uma projeção de slides com legenda em uma TV. Este meu primeiro trabalho já tem essa onda de instalação de foto e texto, e narrativa de cinema, que eu amo e faço até hoje”.
A sala 3, intitulada Escalas de devoração, aborda o jogo tenso de convívio e cuidado, preservação e saque, nos âmbitos sociais, institucionais e ambientais. Em Nostalgia, um sentimento de classe, de 2012, traz o tema da arquitetura modernista, que por um bom tempo foi amplamente explorado pelo artista. “Eu reproduzi um painel de uma casa dos anos 50 de Recife que foi vendida. E aqui eu antecipo sua futura ruína, quando o painel começa a se esburacar", disse.
Em Projeto de abertura de uma casa como convém, de 2010, o artista fotografou uma casa modernista em estado degradado que estava prestes a ser demolida e fez uma maquete da construção em ruínas. “Eu eternizei a casa em uma maquete como se a ruína, nessa lógica de cidade, fosse um projeto de destruição desse legado”, disse.
Em uma de suas obras mais recentes, Teatro das Heroínas de Tejucupapo, de 2022, Jonathas apresenta uma encenação fotográfica da batalha do século 17, na Zona da Mata de Pernambuco, na qual tropas holandesas foram expulsas do vilarejo por um grupo de mulheres. “Ainda hoje as mulheres do local comemoram anualmente essa conquista através de uma interpretação teatral da luta contra os holandeses”. Além das fotografias com a reencenação, o trabalho inclui um inventário dos objetos que essas mulheres usariam hoje nessa batalha. Tem de tudo: vassoura de palha, ferro de passar, panelas. “É como se fosse a batalha diária dessas mulheres pela sua sobrevivência nos dias de hoje”, explica.
Seja por fotos, vídeos, esculturas, cartazes ou poemas, as obras de Jonathas de Andrade levantam importantes questões político-sociais através de fatos reais. “Parecem contos sobre um Brasil longínquo, mas, na verdade, falam sobre dimensões universais, que a gente pode encontrar dentro das complexidades de cada país, questões muito semelhantes de colonização, mal resolvidas na história”, conclui o artista.
Uma mostra para ser vista e compreendida em sua profundidade. A cada próximo bote, a responsabilidade pelo rebote.
Serviço:
Jonathas de Andrade: O rebote do bote
Período: 24.09.2022 a 28.02.2023
Curadoria: Ana Maria Maia
Edifício Pina Estação
Largo General Osório, 66, São Paulo, SP, 4º andar
De quarta a segunda, das 10h às 17h
Gratuitos todos os dias
Ingressos no site ou na bilheteria da Pinacoteca