Ocorre há mais de três décadas: anualmente, os brasileiros estão acostumados a avançarem no tempo, se projetarem no futuro. É como se vestíssemos, coletivamente, o uniforme de visionários. Se os progressistas adoram essa situação pela evolução que ela estabelece por decreto, os conservadores dizem não gostar do avanço, pois preferem a rotina pré-determinada pela história.
Contudo, pelo conceito estar incorporado ao nosso cotidiano, poucos se dão conta de que, simbolicamente, ele nos projeta em direção ao porvir. Mas, meses depois, o avanço se faz inútil: com o término do horário de verão, retrocedemos o relógio em uma hora e voltamos ao ponto em que estávamos no tempo.
Pensar em arquitetura e design visionários nos traz à mente propostas criadas antes de seu tempo. Soluções que aceleram o relógio, como se tivessem, artificialmente, adiantando o calendário. Mas não em uma hora apenas, como nos acostumamos a fazer todo ano, mas em décadas.
LEIA TAMBÉM: Casas futuristas: inspiração na arte, tecnologia e natureza
Algumas épocas são mais propícias e férteis do que outras no processo de aceleração do tempo, propondo ideias que não se encaixam no presente. A década de 1960 é uma boa amostra. Por exemplo: ela fez florescer, em muitas partes do globo, experiências que reverberaram as criações do norte-americano Richard Buckminster Fuller (1895-1988), conhecido como Bucky.
Cúpulas geodésicas como as que ele propôs surgiram em várias partes, atingindo corações e mentes de matizes distintos. Se elas pontuaram comunidades alternativas, acampamentos hippies, também puderam ser vistas em centros de compras, incentivando o comércio, como o Conjunto Nacional, em São Paulo, desenhado por David Liberskind.
Independente de quem as replicou, as geodésicas de Bucky buscavam um só norte: a eficiência e o baixo custo. Inspiradas na natureza, suas invenções objetivavam prover transporte e habitação para todos. No Brasil, ele teve alguns seguidores, como Sergio Bernardes (1919-2002) e Eduardo Longo (1942).
Uma episódio ocorrido com Bernardes exemplifica sua personalidade visionária. Em certa ocasião, um prefeito recém-empossado assistiu a uma apresentação do arquiteto e ficou encantado com a mirabolante possibilidade de cobrir com uma cúpula parte de sua cidade, nas Região dos Lagos, no Rio de Janeiro. Bem intencionado, o jovem gestor marcou uma reunião para Bernardes apresentar a ideia. No horário marcado, na presença de todo o secretariado, Bernardes detalhou a proposta – que tal como o Dome Over Manhattan, criado por Bucky para cobrir parte de Nova York –, protegia a cidade, em nome da economia de energia e regulação das condições climáticas. Bernardes era um sedutor e no final da fantástica apresentação, diante da ideia visionária, o político fez a pergunta fatal: quanto custaria implantá-la? Ao que o arquiteto respondeu: “Nada”. E o prefeito questionou: “Como nada?”. Ao que o projetista lançou sua ironia final: “É simples: o senhor não vai encomendar e eu não vou fazer. Não vai custar nada”.
O autor da Casa Bola, em São Paulo, Eduardo Longo, é outro arquiteto brasileiro visionário. A proposta de sua morada redonda também surgiu com o intuito de economizar recursos, industrializando as unidades. Mas ele não conseguiu adeptos – claro, estava muito à frente de seu tempo! – e somente outra Casa Bola foi realizada, no bairro do Morumbi.
Visionários do presente
Acelerando o relógio e saindo de décadas remotas, dois projetos recentes criados por equipes brasileiras podem ser considerados visionários. Mas não são visionários por apresentarem ideias muito à frente de seu tempo e que, por isso mesmo, estarão fadadas ao papel. A exemplo da temática de Bucky, os dois demostram preocupações com o meio ambiente e com o futuro da humanidade. Além disso, o componente que os une ao mesmo tempo os evidencia dentro do cenário arquitetônico nacional: ambos irão abrigar centros de pesquisa de excelência, cuja contribuição científica poderá ajudar o Brasil a dar saltos tecnológicos importantes. Em outras palavras, por abrigar educação e pesquisa de ponta em nossa realidade, não teria como não considerá-los visionários.
O primeiro deles é a nova base brasileira na Antártida, a Estação Comandante Ferraz. Ela foi projetada pelo jovem escritório curitibano Estúdio 41, que venceu 73 equipes num disputado concurso de arquitetura. A estação está em construção e irá substituir o antigo espaço, que ardeu em 2012, deixando dois mortos. Em fase final de execução, a nova construção garantirá a presença brasileira no continente e, simbolicamente, a qualidade de seu projeto arquitetônico revela a importância estratégica que o país dá para a questão.
A estação terá 3,2 mil metros quadrados e foi imaginada como uma montagem de componentes industrializados, dada a impossibilidade de construir uma obra convencional na Antártica. A fabricação ocorreu na China por uma empresa que venceu a concorrência internacional. Para vencer condições climáticas adversas que o ser humano não consegue suportar, o projeto tem uma série de estratégias. Uma delas, como contam os autores no memorial do projeto, é elevar a estação: “Os edifícios são suspensos sobre pilares reguláveis de modo a adaptar-se às mudanças provocadas pela variação de temperatura e ao degelo”.
A suspensão também é uma característica do segundo projeto visionário que destaquei. Contudo, ao contrário do frio, a estratégia de suspender a construção visa diminuir seu impacto na mata atlântica. Distante quase 5 mil quilômetros da Ilha do Rei George, a nova sede do Instituto de Matemática Pura Aplicada (Impa) será construída no bairro do Horto, no Rio de Janeiro, ao pé do Cristo Redentor.
No final de março passado foi lançada a pedra fundamental do centro de pesquisa, que, quando estiver pronto irá abrigar o mais importante núcleo de matemática do hemisfério sul. O projeto também foi escolhido por meio de concurso (que organizei), para o qual foram convidados seis escritórios de arquitetura, do Rio de Janeiro e de São Paulo. A vitória coube ao escritório Andrade Morettin. Adiantando nosso relógio, oxalá os dois espaços visionários contribuam para nos tirar (um pouco) do atraso científico.