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E o raio partiu…

Projeto de interior residencial por John Graz (Foto: Instituto John Graz)

No vocabulário da meteorologia, um raio é uma descarga de grande intensidade que ocorre na atmosfera, entre duas regiões eletricamente carregadas. Seja no interior de uma nuvem, entre duas delas, ou ainda entre uma e o solo. Em razão de sua intensidade, um raio é sempre perigoso. Desabando sobre uma árvore, ele pode parti-la ao meio. Daí porque qualquer um tem todo o direito de se sentir, no mínimo, bem  incomodado, à simples menção da frase “vá para o raio que o parta”. 

Ainda assim, um raio que desabou sobre o cenário artístico brasileiro, em fevereiro de 1922, foi particularmente bem-vindo. Provocado pelo choque entre o academicismo reinante no País, e as vanguardas, de todas as matizes, que pululavam em solo europeu, seu efeito foi rápido e fulminante. Das artes plásticas à arquitetura, da música ao design, a cisão foi quase absoluta. E nada mais foi como antes.

Ao interpor os conceitos de modernidade e território nacional, a mostra “Raio-que-o-parta: ficções do moderno no Brasil” , merece uma visita prolongada. Em cartaz até o dia 7 de agosto, na unidade 24 de maio do Sesc, “Raio” lança um olhar atento e inspirado sobre esse momento fundamental de afirmação da cultura nacional. Isso, em pleno centro histórico paulistano e a poucos passos do icônico Teatro Municipal – palco cênico, por excelência, dos eventos de 22.  

“Procuramos mostrar ao público que arte moderna já era discutida por muitos artistas, intelectuais e instituições de norte a sul do País, e não apenas em São Paulo”, argumenta o crítico de arte Raphael Fonseca, um dos curadores da mostra, que na montagem trabalhou ao lado de um coletivo de pesquisadores – Aldrin Figueiredo, Clarissa Diniz, Divino Sobral, Marcelo Campos, Paula Ramos e Fernanda Pitta.

Raio-que-o-parta, still do filme Um Céu Partido ao Meio (Créditos: Danielle Fonseca)

Ao todo, são cerca de 600 obras, de 200 artistas, como Genaro de Carvalho, Anita Malfatti, Tomie Ohtake, Pagu, Tarsila do Amaral e Mestre Vitalino, entre outros, menos ou mais conhecidos. “Acredito que além de ampliar o raio geográfico, diversificar a representação, indo além da linguagem pictórica, foi essencial para expressar a visão das muitas modernidades, e não apenas de uma, unificadora, que se manifestaram no Brasil durante o período”, considera Fonseca.  

Para além de pinturas e esculturas, o projeto tem o mérito de incorporar uma extensa base documental, incluindo objetos de uso cotidiano, pratarias e adereços. A eclética arquitetura do período, bem como seus desdobramentos, na forma do design de móveis e de interiores  não foi diretamente contemplada. Mas, definitivamente, está presente como pano de fundo. 

Raio-que-o-parta, still do filme Um Céu Partido ao Meio (Créditos: Danielle Fonseca)

Desde as casas "Raio-que-o-parta'' – estilo arquitetônico encontrado nas fachadas de antigas casas da cidade de Belém, no Pará, que, inclusive, empresta seu nome à mostra –, até as muitas fotos de edifícios e fábricas, antenas e pavilhões, construídos, tanto nas modernas avenidas do eixo Rio- São Paulo, como em pleno sertão nordestino, ou ainda em meio à imensidão da Floresta Amazônia. 

Febre paraense na década de 1950, a onda do "Raio-que-o-parta''  – caracterizado pela justaposição de cacos de azulejos para produzir fachadas geométricas, anguladas e coloridas –, não se restringiu às elites locais. Livremente apropriado por todas as camadas da sociedade, o conceito foi aplicado a várias construções locais, com o objetivo declarado de “modernizar”  o que era considerado obsoleto. 

Um desejo comum, à época, a todos os setores da criação artística nacional, incluindo o desenho de mobiliário. Reinterpretados pelos “designers”, do período – em sua maioria arquitetos recém-chegados ao País –, conceitos desenvolvidos pelo Art- Déco e pela Escola Bauhaus, então em pleno funcionamento na Alemanha, passaram a encontrar sua expressão também por aqui. Em particular, na produção de três personagens referenciais no período.  

Projeto de interior residencial por John Graz (Foto: Instituto John Graz)

Amigo de Oswald de Andrade, o pintor suiço John Graz, participou da semana das artes com sete de suas telas. Artista multifacetado, e nosso primeiro decorador, Graz se notabilizou por seus estudos a guache, que levavam a seus clientes uma visão completa e integrada de ambientes residenciais, incluindo, além do mobiliário, os acessórios e seus revestimentos. Tal qual hoje fazem nossos designers de interiores.

O pintor, decorador e ilustrador John Graz (Foto: Instituto John Graz)

Produzidos hoje pela Dpot, a partir de arquivos pertencentes ao Instituto John Graz, (institutojohngraz.org.br) , seus desenhos, à sua época,  nunca chegaram a ser produzidos em série. Dentro de um processo que, segundo os responsáveis da marca, ainda está em pleno andamento, foram cinco as peças já editadas pela marca paulistana: um sofá, uma poltrona – com ou sem um apoio para os pés –, além de uma mesa e de uma cadeira.  

Cadeira desenhada por John Graz
Cadeira desenhada por John Graz e editada pela Dpot (Foto: Dpot Móveis)

Já o ucraniano Gregori Warchavchik, considerado o primeiro arquiteto modernista em atuação no País, chega ao Brasil  em 1923, no auge da agitação modernista. Como ocorreu a muitos de seus pares, começou a desenhar móveis para equipar os espaços que projetava. Entre eles, a primeira obra de arquitetura reconhecidamente moderna implantada no Brasil: a célebre Casa Modernista da Rua Santa Cruz, em São Paulo. 

O arquiteto Gregori Warchavchik (Foto: Ilya Warchavchik Warchavchik)

Desenhando a partir dos parâmetros elencados pela Bauhaus –  devidamente adaptados à realidade local –, seus móveis, construídos com base em madeiras nativas, têm no geometrismo um dos seus pontos fortes. Desenhado em 1928 para compor a Casa Modernista, seu carrinho de chá, por exemplo, é hoje um dos best-sellers da marca paulistana Etel, que detém os direitos de produção do mobiliário assinado pelo arquiteto.   

Carrinho de chá de Gregori Warchavchik
Carrinho de chá de Gregori Warchavchik, reeditado pela Etel Design (Foto: Etel Design)

Irreverente, provocador, mas essencialmente movido pelo ideal modernista de romper com as convenções, o carioca Flávio de Carvalho se forma em engenharia civil na Inglaterra, em 1922. Pouco tempo depois, se transfere para São Paulo, onde, além de trabalhar como arquiteto, começa a ter um contato mais estreito com os modernistas locais – em especial, Mário e Oswald de Andrade. 

arquiteto Flávio de Carvalho
O arquiteto Flávio de Carvalho (Foto: Futon Company)

Considerado um dos pioneiros do modernismo na arquitetura brasileira, Flávio imprimia um caráter transgressor a tudo o que fazia, da pintura ao desenho de mobiliário. Não satisfeito em radicalizar no projeto de sua casa em Valinhos, interior de São Paulo, o arquiteto se dedicou a desenhar todos os seus móveis. Dentre eles, a icônica FDC1, uma poltrona absolutamente inovadora para sua época, com estrutura de ferro e tiras de couro aparentes, comercializada pela Futon Company. A forma redonda do encosto, sua inclinação, as tiras de couro pendentes. Um objeto, esteticamente, no limite entre a arte e o design, e que no entender de muitos remete diretamente à arte tribal, a uma máscara indígena. Mas que, conforme sugere o título da mostra em cartaz no Sesc, definitivamente ajudou a rasgar os céus da nossa criação, revelando uma, entre as muitas porções, ricas e distintas de nossa modernidade. Inclusive de nosso nascente design.

poltrona FDC1 de Flávio de Carvalho
A poltrona FDC1 de Flávio de Carvalho (Foto: Futon Company FDC1 perfil ©Objekto )
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