História é o que escolhemos contar – e nunca é tarde para novas narrativas. Há vinte anos, pouca gente conhecia o mobiliário de Joaquim Tenreiro, Zanine Caldas ou Geraldo de Barros. Seus nomes se dissiparam à medida que aquela produção marcada por linhas simples, em madeira maciça, foi substituída por móveis influenciados por tendências pós-modernas internacionais e novos materiais, nos anos 1970 e 80. O tema, contudo, está hoje sob os holofotes da mídia, inclusive internacional – resultado de iniciativas complementares de galerias, museus, coleções privadas, institutos e publicações.
O esclarecimento da produção daqueles anos 1950 e 1960 ainda é parcial. Os autores conhecidos provêm, em sua maioria, do Rio de Janeiro e de São Paulo, no entanto, a arquitetura moderna alcançou outras regiões do Brasil, e também nelas alimentou móveis condizentes com os novos edifícios. São produções muitas vezes ainda pouco divulgadas, mesmo localmente. Uma experiência foi relatada pelos sócios da galeria paulistana Apartamento 61, especializada em mobiliário moderno, na mostra Migrações, apresentada no setor de design da feira SP-Arte 2018. Vivian Lobato e André Viscontis descobriram um conjunto de móveis proveniente de uma residência em João Pessoa que, pelo desenho, tipo de madeira e características da confecção, os fez pensar em Joaquim Tenreiro ou Lina Bo Bardi. A partir de duas pistas grudadas nos móveis – um selo “Casa Hollanda” e adesivos com a inscrição Luiz Ribeiro Coutinho (nome do cliente que, eles descobriram a seguir, encomendou o projeto) – chegaram ao arquiteto carioca Acácio Gil Borsoi. Discípulo de Lucio Costa e Affonso Eduardo Reidy, Borsoi foi responsável por algumas das principais obras modernistas em João Pessoa e Recife, cidade em que viveu por cerca de trinta anos. A fábrica de móveis Casa Hollanda, por sua vez, funcionou entre 1928 e 1973, e abraçou com grande empenho, nos anos 1960, a modernização do móvel. Produziu linhas desenhadas por arquitetos e chegou a exportar seus produtos, história que tem paralelos com a da Oca, de Sergio Rodrigues, ou a L’Atelier, de Jorge Zalszupin.
Descentralizar o olhar é fundamental na construção da história material brasileira, seguindo os passos precursores de Lina Bo Bardi, Aloisio Magalhães ou Janete Costa. Bo Bardi valorizou a força vital contida em objetos corriqueiros, criados com sucata por moradores de regiões pobres do país para seu uso cotidiano. Revelou essa força criativa, que chamou de pré-artesanato, em exposições pelo país, como “A Mão do Povo Brasileiro”, realizada no Museu de Arte de São Paulo. O designer Aloisio Magalhães, muito conhecido por sua obra gráfica (são dele os logotipos da Petrobras, Unibanco e União), coordenou uma iniciativa pioneira nos anos 1970, o Centro Nacional de Referência Cultural, em Brasília, cujo objetivo foi propor uma identidade para o design brasileiro a partir do resgate histórico – em suas palavras “reencontrar os fundamentos da nacionalidade para construir uma forma e um modelo que nos caiba”. A arquiteta pernambucana Janete Costa fez 3.000 projetos de decoração, sempre atenta à inclusão de móveis, objetos e técnicas de cada local, principalmente de artistas e artesão ditos “populares”.
Essa abordagem se expandiu. “Percebo em vários países que as pessoas estão mais ligadas à questão do território, e querem coisas que expressam o seu lugar de origem”, diz a curadora de design brasileiro Adélia Borges, presença frequente em seminários internacionais. Ela acaba de inaugurar uma exposição sobre a produção moveleira em madeira do Espírito Santo, e levanta a bandeira de que os estados precisam construir seus capítulos dentro da história do design nacional. Em “Móvel Capixaba: Passado e Presente”, em cartaz até setembro na Sesi Arte Galeria, em Vitória, Adélia optou por um percurso cronológico para ressaltar a singularidade da produção. No Espírito Santo, a tradição da marcenaria chegou com imigrantes italianos da região do Vêneto, no final do século 19, e foi a transmissão familiar e comunitária dos saberes que levou à criação das marcenarias de alto padrão e das indústrias moveleiras atuantes no estado.
Um destaque da mostra capixaba é o móvel dos imigrantes pomeranos, caracterizado por decorações – como o uso da cor, vazados e recortes –, feitas com técnicas rudimentares e de grande valor expressivo. Nesse caso, a produção já havia sido mapeada por iniciativas governamentais e de antiquários, mas permanecem lacunas em sua caracterização. Um caso semelhante que merece maior estudo, segundo Borges, é o do móvel mineiro de influência barroca. “A absorção do barroco em Minas Gerais, cujo símbolo máximo é Aleijadinho, gerou coisas lindíssimas no móvel popular, como as fascinantes policromias."
São muitos os exemplos no campo do mobiliário – as redes, móvel ameríndio por excelência, ainda não foram alvo de uma grande mostra no Brasil. Duas outras exposições recentes podem ser citadas. A galeria Bergamin Gomide, em São Paulo, exibe até agosto “(I)móveis”, armários e aparadores do mineiro Porfírio Valadares que fazem referência a edifícios modernos e foram executados pelo talentoso marceneiro Zé Dias. “Bancos Indígenas do Brasil”, com exemplares da coleção BEI, apresenta pesquisa abrangente dos assentos, em sua maioria ritualísticos, produzidos por artesãos de etnias do Mato Grosso, Tocantins, Pará, Rondônia e Amazônia. A mostra se divide entre o Pavilhão Japonês do Ibirapuera, em São Paulo, e o Museu Teien, em Tóquio – esta com expografia do arquiteto japonês Toyo Ito.
No livro da coleção BEI a curadora e crítica de design Giovanna Massoni escreve: “A missão [da dimensão material de um objeto] é acompanhar ou expor, sem mediação e sem filtro, as necessidades e os desejos de uma época, um status, um povo”. Cada lugar e cada tempo podem produzir objetos de valor. É preciso um primeiro gesto de atenção para desencadear, se merecido, uma reação em cadeia. E esse passo pode ser dado por arquitetos ao elegerem criadores e criações locais, populares ou eruditos, históricos ou contemporâneos, no momento de preencher os interiores de seus projetos.