Antagonistas do home office
Enquanto escrevemos esse texto, do conforto do home office, milhões de pessoas se deslocam em direção ao trabalho. As horas in itinere, expressão do latim que significa “no itinerário”, são utilizadas para nomear o tempo gasto pelo funcionário para percorrer o trajeto casa-trabalho e trabalho-casa.
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Pela Lei nº 13.467 de 2017, que altera as informações contidas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), “tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador”.
Ou seja, mesmo que você gaste, todos os dias, intermináveis horas para ir e voltar do trabalho, essas horas não farão parte do cálculo de remuneração, contando apenas as horas dentro da empresa.
Enquanto urbanistas, precisamos destacar que, na maioria das cidades brasileiras, o deslocamento do trabalhador é um martírio diário. A cidade espraiada, o alto custo dos imóveis centrais que impede que o trabalhador more perto de onde trabalha, somados à negligência com transporte público coletivo, resultam em horas gastas diariamente nesse deslocamento.
Tempo que poderia ser dedicado a tantas outras atividades mais saudáveis: estar com a família, com os amigos, cozinhar suas próprias refeições, se exercitar, ler, ver um filme ou, simplesmente, usufruir do ócio.
O que já é grave nas cidades médias é completamente massacrante nas metrópoles.
É justamente em razão desse aglomerado de indignação que uma notícia divulgada nas últimas semanas nos chamou tanta atenção:
“Olhos inchados, corcunda e mãos em garra:
empresa mostra como serão os trabalhadores remotos daqui a 70 anos.”
Batizada de “Anna” , a modelagem 3D retrata uma mulher com postura curvada, mãos em formato de garra, olhos vermelhos e inchados, ilustrada na capa de uma chamada sensacionalista, típica do estilo caça-cliques. É bem provável que essa notícia tenha chegado até suas redes sociais e você saiba do que estamos falando.
A projeção foi desenvolvida e publicada em um blog pela empresa de móveis canadense Furniture At Work, para visualizar os efeitos de não ter um local adequado para trabalhar em casa. E, embora tenha sido equivocadamente vinculada pela mídia a uma pesquisa da Universidade de Leeds no Reino Unido, em nada reflete os resultados da pesquisa.
"Anna exibe muitos defeitos físicos, devido ao uso consistente de tecnologia, exposição à tela e má postura, além de destacar possíveis problemas de saúde mental", segundo Furniture At Work.
Em resumo, as imagens são basicamente peças de marketing para vender mobiliário. Depois que a notícia percorreu cada canto da internet, a empresa apagou o post e nada comentou sobre o assunto. Claro que, depois de viralizar na rede, a campanha contra o home office já estava feita e, com tantos portais de notícias com a abordagem similar, não parecia ser uma simples coincidência.
“Assustador! Projeção bizarra mostra como ficarão trabalhadores em home office”
“É assim que as pessoas que trabalham em home office serão em 70 anos”
“Chocante! Empresa mostra como pessoas que fazem home office estarão em 70 anos”
Por que tanto medo do trabalho remoto? O vilão da saúde do trabalhador é mesmo o home office? Não seria a carga horária exaustiva, as horas no transporte público lotado, a escassez de lazer e o descanso insuficiente os motivos de adoecimento dos trabalhadores?
A parcela de brasileiros que trabalha remotamente é pequena. Mesmo no auge da pandemia de COVID-19, pouco mais de 15% dos trabalhadores atuavam dessa forma. Esse número é ainda menor em 2023, representando apenas seis que exercem suas atividades totalmente em casa de cada 100 profissionais.
Em parte porque algumas atividades são, necessariamente, presenciais, mas, principalmente, pelo apego dos gestores às dinâmicas de controle e vigilância do trabalho presencial. A ideia arraigada de que: “se não estou vendo meu funcionário trabalhar, é porque ele não está trabalhando”.
Acontece que parte da população pôde experimentar o home office, quando ensaiamos um modo de trabalho com mais autonomia e confiança, com responsabilidades compartilhadas e benefícios para o trabalhador e para as empresas.
Foi quando, inclusive, essas pessoas também descobriram que suas casas não eram tão confortáveis quanto pareciam, os ambientes não estavam preparados para abrigar tantas demandas diferentes (trabalho, lazer e descanso) e tudo parecia genérico, sem identidade: o reflexo da falta de tempo para desfrutar e dedicar-se ao próprio lar.
Com os olhos voltados para a sua casa, muitos colocaram a mão na massa para deixar o local mais confortável e funcional: uma reforma na pintura, vasos de planta pela casa, fotos da família, uma cadeira mais confortável ou um novo espaço de estar.
A casa recebeu atenção e seu morador também!
Já contamos por aqui nossa experiência, com uma rotina de trabalho híbrida que permite mesclar os dias de trabalho remoto com as reuniões presenciais. Um estilo de vida que faz sentido para nós, mas que sabemos que nem todos têm acesso.
É claro que passar oito horas sentado na empresa ou em casa, por si só, não é o que define a saúde física e mental do indivíduo. Porém, são vários os fatores aliados a uma jornada de trabalho mais humana e flexível, como mobiliário e equipamentos adequados, ambiente confortável com boa iluminação e ventilação naturais, pausas ao longo do dia para caminhar, se alongar, observar a vida acontecendo pela janela, bom convívio entre os colegas, roupas confortáveis, tempo para passar um café, fazer um carinho no pet, coisas simples que deixam o cotidiano mais leve.
Na realidade, todo esse alarde parece um simples medo da mudança, que não tem razão para existir, afinal, o trabalhador satisfeito é mais produtivo. Com uma liderança bem conduzida, boa comunicação entre a equipe e uso correto de ferramentas de organização de tarefas e análise de produtividade, o trabalho remoto ou híbrido pode ser uma alternativa positiva.
Para o trabalhador, mais qualidade de vida e tempo livre para desfrutar. Para as empresas, o aumento da produtividade, a oportunidade de expandir o negócio sem alterar o espaço físico e a possibilidade de contratar pessoas de outras localidades, com uma equipe mais diversa e plural.
Sem regras ou receita de bolo, esse texto é apenas um lembrete para estarmos atentos ao que nos adoece!